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Documentário sobre Sérgio Ricardo, de Rafael Hagemeyer engrandece a arte

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publicado em 27/04/2024 às 17h00
atualizado em 27/04/2024 às 16h41

Kubitschek Pinheiro

Os admiradores de Sérgio Ricardo, nome artístico de João Lutfi, um dos maiores artistas do Brasil, músico, compositor e cineasta – mais que isso, acabam de ganhar um documentário “Sérgio Ricardo, uma outra história do cinema novo”. que tem como diretor Rafael Hagemeyer 

O escritor, professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) Rafael Hagemeyer  imortaliza mais a figura do artista neste trabalho

Trata-se de um documentário sobre a carreira cinematográfica pouco reconhecida do músico, cineasta e cantor Sérgio Ricardo destaca a importância da contribuição técnica e estética do artista durante o período do Cinema Novo e demonstrou expectativa em uma maior valorização da obra do artista a partir do filme.

Sérgio Ricardo é aquele que quebrou o violão e jogou parou o público no Festival da Canção em 1967.

Com produção da Manacá Cine, o documentário revela a rica e diversificada trajetória desse artista multifacetado, cuja contribuição para o cinema brasileiro vai muito além do episódio icônico do violão quebrado no Festival da Record em 1967.

Em longa entrevista com ao MaisPB, o professor e cineasta Rafael Hagemeyer fala em detalhes da alegria de ter realizado em filme – merecidamente com a obra e memória, de Sérgio Ricardo e todos saem ganhando com essa maravilha de personagem. 

MaisPB  – O filme é tão bonito, as imagens iniciais do Rio, o corcovado e Sérgio Ricardo surgindo. Vamos começar por aqui, pela escolha do Rio abrir o filme?

Rafael Hagemeyer –  Sérgio Ricardo, apesar de ter nascido em Marília, no interior de São Paulo, radicou-se no Rio de Janeiro com sua família, sendo um dos pioneiros da Bossa Nova e do Cinema Novo. Embora também tenha vivido na capital paulista e realizado uma obra que dialoga com outras regiões do país, notadamente com a cultura nordestina, Sérgio Ricardo acabou indo morar no morro do Vidigal nos anos 1970 – onde realizou suas últimas produções artísticas. E vale também destacar que todas as entrevistas feitas para o documentário foram realizadas no Rio de Janeiro, onde hoje vivem e trabalham seus parceiros de trabalho e de vida.

MaisPB – E o encontro no Beco das Garrafas…

Rafael Hagemeyer  – Estivemos com ele no Beco das Garrafas, onde ficavam as boates de Copacabana onde se gestou a Bossa Nova. A entrevista com Ziraldo foi em seu estúdio, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Antônio Pitanga foi entrevistado na sua produtora Ganga Zumba Produções, no centro do Rio. Luzia Motta nos concedeu entrevista na livraria Leonardo da Vinci, durante o lançamento do livro que realizamos sobre a obra de Sérgio Ricardo. A atriz Ítala Nandi foi gravada em sua residência, na Barra da Tijuca, da mesma forma que ocorreu com os cantores Alceu Valença – que vive numa cobertura no Leblon – e Geraldo Azevedo que possui uma casa no Cosme Velho no Rio de Janeiro, cidade  onde vivem seus filhos Marina Lutfi e João Gurgel, que desenvolveram com ele os shows “Cinema na música” apresentando as trilhas sonoras feitas por ele com projeção de imagens dos filmes. A mãe de Marina, a museóloga Ana Lúcia de Castro, é professora da UNIRIO e através da universidade mantém um acervo da memória de Sérgio Ricardo na sua antiga residência no bairro da Urca, onde se encontram discos, partituras, cartazes dos filmes, além do catálogo de fotografias e recortes de jornais e revistas utilizados no filme.

MaisPB – Já estava nos planos fazer o Sérgio Ricardo: Uma Outra História do Cinema Novo?

Rafael Hagemeyer –  A ideia surgiu em 2016, quando iniciei o projeto de pesquisa “A Câmera Acústica de Sérgio Ricardo” na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), ligado ao Laboratório de Imagem e Som do curso de História, dedicado à produção de áudio e vídeo, e que eu coordenava na época. Formulei o projeto com o incentivo do Daniel Saraiva, que eu orientei no início do seu doutorado lá sobre a Nova Música Nordestina, já tinha entrevistado o Sérgio Ricardo e tinha o contato dele.

MaisPB – E depois?

Rafael Hagemeyer  – Formamos uma equipe e fomos para o Rio, e lá gravamos a primeira entrevista com ele e no dia seguinte com o Ziraldo. Todas as entrevistas já tinham um termo de consentimento dentro dos padrões da pesquisa acadêmica, prevendo a possibilidade de realização do documentário. O projeto se realizou através da parceria com a Márcia Navai, da produtora Manacá, que viabilizou o projeto dentro dos padrões profissionais da Agência Nacional de Cinema (ANCINE), e em 2018 fomos selecionados pelo Prêmio Catarinense de Cinema para viabilizar o roteiro e edição de imagens. Com o roteiro pronto e o processo de edição bastante avançado no ano seguinte, tivemos a extinção do Ministério da Cultura e o congelamento dos processos na ANCINE, e o filme ficou parado aguardando a autorização e o financiamento. Felizmente foi possível alterar esse quadro e trazer através do Canal CINEBRASiLTV o documentário ao público dentro dos padrões do cinema nacional.

MaisPB – Mesmo sabendo da ligação de Sérgio Ricardo  com o cinema, a cena e a história da música por ele quebrando seu violão e atirado sobre a plateia que o vaiava no festival da Record de 1967, por haver mudado o arranjo da música Beto bom de bola, já daria um filme, né?

Rafael Hagemeyer – Há muitas coisas não muito bem elucidadas a respeito desse acontecimento. Em primeiro lugar, a vaia não parece ter relação com a mudança de arranjo – algo que é anunciado pelo apresentador do festival antes da entrada de Sérgio Ricardo, já sob vaias. A canção Beto Bom de Bola era uma crítica ao mito do jogador de futebol que inspirava tantos garotos da periferia a se tornarem um novo Rei Pelé, mas que acabavam sua carreira de forma melancólica como Garrincha. O dono da TV Record era presidente da Federação Paulista de Futebol, e tinha na exibição das partidas esportivas uma de suas mais lucrativas transmissões. Ao que tudo indica, a vaia foi orquestrada e talvez até mesmo amplificada, já que havia microfones espalhados pela plateia para captar a reação do público, de modo a deixar o cantor sem retorno, como ele reclamava ao final, pois não conseguia nem ouvir o tom. O gesto de protesto contra o público que não deixou apresentar sua canção viraria moda no cenário da contracultura, uma performance dadaísta/modernista realizada por Jimi Hendrix e outros. Segundo o que o Sérgio confidenciou para nós, a quebra do violão pode ser vista como uma metáfora de uma crítica à indústria cultural, que deixou de valorizar os talentos que existiam e passou a arrecadar com base na cobrança pela divulgação dos artistas, além de produzir suas próprias celebridades.

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MaisPB  – São dele as trilhas sonoras Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e de Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, isso já é fundamental no seu filme?

Rafael Hagemeyer –  A parceria com Glauber Rocha se iniciou no Rio de Janeiro, através do Laboratório Cinematográfico Líder, onde Nelson Pereira dos Santos trabalhava como montador do filme Barravento e se interessou pelas filmagens trazidas por Sérgio Ricardo para revelação, oferecendo-se para montar o filme.

Apesar dos ciúmes de Glauber no início, o fato é que Sérgio acabou por compor a canção Barravento, num momento de inspiração após ver o filme de Glauber Rocha no cinema. O cineasta baiano lamentou que a canção poderia ter integrado a trilha sonora do filme se tivesse sido composta antes, e foi isso que motivou o convite para que Sérgio Ricardo musicasse o cordel “Deus e o Diabo na Terra do Sol” que Glauber havia escrito. Certamente o fato de Sérgio Ricardo ser a voz da cena final do filme, cantando a perseguição e a morte do cangaceiro Corisco, já é suficiente para lhe dar um lugar na história do Cinema Novo. Contudo, o seu trabalho como cineasta, produzindo quatro filmes de qualidade técnica e estética reconhecidas internacionalmente, ainda não tivera o destaque merecido, e esse é o sentido do nosso documentário.

MaisPB – Como se deram as entrevistas, ele dizendo que já não tinha boa memória…

Rafael Hagemeyer – Apesar de Sérgio Ricardo começar sua primeira entrevista avisando que não tinha boa memória em relação a fatos e datas, naquela tarde ele mesmo se surpreendeu ao lembrar do nome de tantas pessoas que passaram pela sua vida. A verdade é que ele simpatizou muito conosco, se sentiu muito à vontade com a equipe, viu o interesse e a admiração de todos pelo seu trabalho, o conhecimento que tínhamos a respeito dos detalhes da sua vida e sua obra. Isso abriu as portas para que ele nos acompanhasse no dia seguinte ao Beco das Garrafas para mostrar a primeira boate em que ele trabalhava como pianista e visitasse o amigo Ziraldo conosco, depois de tanto tempo.

MaisPB – Algo ficou fora do documentário?

Rafael Hagemeyer  – Havia uma sequência, que não entrou na versão final do documentário, onde Ziraldo e Sérgio Ricardo se esforçavam para lembrar de uma canção que Tom Jobim teria criado em homenagem a Lamarca… o capitão Carlos Lamarca, um dos nomes mais destacados na resistência contra a ditadura militar. Ziraldo lembrava que no início da canção Tom usava um apito, imitando um passarinho, depois lembrava de uma grande introdução orquestral… até que Sérgio Ricardo foi cantarolando a melodia, e a equipe reconheceu que se tratava da canção Passarim, que posteriormente serviria como tema de abertura da série O Tempo e o Vento, realizada pela Rede Globo. Saber que Tom Jobim compôs essa canção em homenagem a Lamarca e que apresentou essa canção na casa de Sérgio Ricardo foi realmente um momento memorável.

MaisPB – Pena que ele não viu o filme?

Rafael Hagemeyer –  Eu fiquei muito chateado que Sérgio Ricardo não tenha visto a sala cheia e os aplausos de pé que nós recebemos na pré-estreia, aqui em Florianópolis. A notícia do seu falecimento em meio à pandemia também foi para mim uma grande frustração. Mas fica de consolo que a pesquisa mais extensa que nós realizamos está contida no livro Esse mundo é meu: as artes de Sérgio Ricardo, reunindo estudos de vários pesquisadores com textos e fotografias que se aprofundam na obra de Sérgio Ricardo, seja no âmbito do cinema, seja na música, na dramaturgia e nas artes plásticas.

MaisPB – Mas o livro ele viu?

Rafael Hagemeyer  – Sim. Ele esteve presente no lançamento, se emocionou com a homenagem e autografou os livros junto conosco. Segundo ele postou em seu perfil pessoal, “Agradeço a Rafael Rosa Hagemeyer e Daniel Lopes Saraiva, organizadores do livro Esse mundo é meu: AS ARTES DE SERGIO RICARDO. Estou quase no fim do livro, impressionado com a análise e a exatidão dos fatos e feitos, além de emocionado com o detalhamento no garimpo da minha extensa caminhada nas artes. Um beijo no coração de cada um envolvido na criação deste livro”. Um reconhecimento como esse é algo que não tem preço.

MaisPB  –  A chegada de João Gilberto na vida dele, o violão, o aprendizado. Vamos falar sobre isso?

Rafael Hagemeyer –  Sérgio Ricardo era um pianista consagrado, tinha uma técnica tremenda, já tinha gravado discos quando João Gilberto apareceu em Copacabana para ficar na casa dele. Ele conta que voltava para casa de madrugada com o amigo, caminhando pelo calçadão à beira da praia, falando de como a vida era bonita… E o João Gilberto falando que não era bem assim, que havia muita injustiça no modo como a riqueza era distribuída no mundo, e que o Sérgio Ricardo deveria ler O Capital, de Karl Marx. A história já foi contada em outro documentário, e parece engraçada porque João Gilberto sempre foi visto como um compositor socialmente alienado, que nunca compôs canções de protesto político ou crítica social. Isso foi antes do sucesso e do reconhecimento de João Gilberto com o LP Chega de Saudade em 1959. Nessa época, o cantor e violonista baiano estava numa situação bastante difícil, e Sérgio Ricardo lhe deu abrigo. E assim foi aprendendo algumas lições de violão, se familiarizando com instrumento com o qual alguns anos depois iria para os Estados Unidos. Sérgio Ricardo passou um ano se apresentando nas casas noturnas do Greenwich Village em Nova Iorque, participando também do antológico show da Bossa Nova no Carnegie Hall – onde apresentou sua canção Zelão acompanhado do percussionista Milton Banana. Lá, ele reencontrou João Gilberto, Tom Jobim, Carlos Lyra e tantos outros nomes que participaram daquela noite que tornaria a Bossa Nova uma moda eterna nos Estados Unidos.

MaisPB – Depois vem Ziraldo que nos deixou recentemente, fala aí?

Rafael Hagemeyer  – A entrevista com Ziraldo foi uma das mais emocionantes porque foi a única em que Sérgio Ricardo estava presente. Isso trouxe uma grande descontração, pois o cartunista provocava o tempo todo o amigo dizendo que ele não se lembrava de nada. Mas também demonstrava por ele uma imensa admiração, como “o maior músico do mundo”. Ele relembrou sua atuação como ator dos dois primeiros filmes de Sérgio Ricardo, O Menino da Calça Branca e Esse Mundo é Meu, e também do projeto do jornal O Pasquim, no qual Sérgio Ricardo realizou o projeto Disco de Bolso, ilustrado por Ziraldo, que consistia num disco que vinha encartado no jornal. Curiosamente, Ziraldo veio a falecer horas depois da pré-estreia do documentário em Florianópolis, fazendo com que muitos amigos naquela tarde comentassem comigo a coincidência, ainda emocionados que estavam pela exibição ocorrida de manhã.

MaisPB  –  Os 4 filmes de Sérgio Ricardo no  Cinema Novo, O menino da calça branca (1961), Esse mundo é meu (1964), Juliana do amor perdido (1969) e A noite do espantalho (1974), são coisas raras e muita gente nunca vai ver, né?

Rafael Hagemeyer –  Nós chegamos a realizar aqui em Florianópolis duas mostras de cinema com os filmes de Sérgio Ricardo – uma na Fundação Badesc e outra no Centro Integrado de Cinema. A maioria dos filmes estão disponíveis para venda em DVD na “lojinha” do site oficial www.sérgioricardo.com e também, eventualmente, são disponibilizados na plataforma YouTube. Esse Mundo é Meu foi considerado pela crítica internacional como um dos melhores filmes produzidos em 1964, mas o mais cultuado continua sendo A Noite do Espantalho, pela abordagem psicodélica de um nordeste futurista, e que conta com a atuação fabulosa dos cantores Alceu Valença e Geraldo Azevedo.

MaisPB  – O que  mais lhe emocionou nessa travessia “Sérgio Ricardo: Uma Outra História do Cinema Novo”?

Rafael Hagemeyer –  Certamente o que mais me emocionou foram as entrevistas. O fato de estar diante de figuras extraordinárias da cultura brasileira, que sempre admirei e jamais imaginei que estaria um dia frente a frete conversando sobre sua vida e sua obra. Foi muito emocionante para todos nós. Pessoas que abriram as portas generosamente para receber nossa equipe, ceder um tempo de suas vidas para compartilhar suas memórias e impressões, e que fizeram isso com um mesmo objetivo: agradecer a Sérgio Ricardo pelo trabalho e oportunidades que ele abriu, pelo significado de sua obra multifacetada e corajosa, num período difícil como aquele da ditadura militar. E, é claro, por seu compromisso inegável com o povo brasileiro – e em especial a comunidade do Vidigal. O documentário tem o mérito de mostrar essa aventura, as descobertas, as surpresas e a eterna gratidão a esse incansável batalhador que foi Sérgio Ricardo. É nosso propósito que ele tenha agora seu devido lugar na história do cinema brasileiro, e que segundo as críticas parece algo mais do que merecido.

Clique aqui e confira o treiler do documentário 

Confira o calendário de exibições no CINEBRASiLTV:

03/05/2024 Sexta 23h

06/05/2024 Segunda 07h

08/05/2024 Quarta 22h30

12/05/2024 Domingo 07h30

16/05/2024 Quinta 05h

18/05/2024 Sábado 21h30

20/05/2024 Segunda 22h30

22/05/2024 Quarta 15h

24/05/2024 Sexta 00h

26/05/2024 Domingo 14h

28/05/2024 Terça 07h

30/05/2024 Quinta 16h

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