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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Desmitificando a maternidade

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publicado em 27/03/2024 às 07h00
atualizado em 26/03/2024 às 14h53

 

Leio, com gosto, Travessia, de Ana Lia Almeida (foto) (Belo Horizonte, Venas Abiertas, da Coleção III, Mulherio das Letras, 2021). Chama-me a atenção, de logo, a ficha catalográfica, classificando o texto como “novela”. Será?

Só se tomarmos o termo na concepção alemã, sobretudo a partir de Goethe, no qual esta forma literária distingue-se dos demais modelos narrativos, caracterizando-se, conforme entendimento de Modesto Carone acerca das novelas de Kafka, “por um tipo especial de ação em que, através de descrição realista, o desfecho, desencadeado por uma ´virada` repentina, se consuma com a necessidade interna de um drama teatral”.

Neste sentido, não caberia, à história escrita por Ana Lia Almeida, o conceito de novela na perspectiva da tradição portuguesa e latina, demarcada, principalmente, pela fluidez da trama, pluralidade de conflitos e dinâmico movimento das ações e peripécias. Sem descartar o elemento intrínseco da concepção dramática e já nem tanto a mudança brusca da ação, creio que a categoria mais apropriada para a classificação seja a do conto, do conto longo, se levo em consideração a significação, a intensidade e a tensão, tão enfatizadas por Julio Cortázar, em função de suas leituras de Edgar Allan Poe.

O enredo do conto é simples, linear, a despeito de alguns cortes temporais que dinamizam a sequência dos fatos, a seu turno, narrados em primeira pessoa pela protagonista e sob um foco narrativo colado a seu peso e à sua medida. Jean Pouillon chamaria de “visão com”.

O conflito central e único gira em torno dos tormentos e das perplexidades da jovem mulher, grávida de pai desconhecido, indecisa e desamparada em face dos dilemas da maternidade. As quedas, os tropeços, a passagem, com suas experiências específicas, consolidam os traçados dessa travessia. A propósito, já entrevistos no “Sumário”, o que, de certa maneira, parece-me comprometer o fluxo episódico, pela previsibilidade do desenlace.

No mais, tirante uma que outra nódoa no ato de compor, sobremaneira se me atenho a certas passagens em que a voz da autora, alicerçada em certo viés ideológico, tende a comprimir a dicção da narradora, a história se desenvolve num ritmo tenso, numa intensidade e num tom que persuadem e seduzem.

O “quê” e o “como” da narrativa se fundem e se correspondem. Deste equilíbrio entre forma e fundo, entre substância e estilo, entre assunto e método, pode-se perfeitamente abstrair sua componente significativa. E, daí, não importam apenas os “objetos representados”, como diria Roman Ingarden, os ingredientes da fabulação, os conflitos subjetivos da personagem, os registros reflexivos que perpassam a ordem do discurso. Importa, sobretudo, aquela explosão ideativa que vai muito além daquilo que simplesmente é contado.

Em certa dimensão, com Travessia, Ana Lia Almeida ensaia, em outra clave, uma meditação seminal sobre o mito da maternidade. Exposta à incontornável solidão e aos tremores do estado e da situação em que se encontra, a narradora vai palmilhando os acontecimentos cotidianos, tentando compreender o seu drama, ao mesmo tempo em que vai refletindo sobre seus efeitos, desconstruindo os clichês, fazendo a crítica da ideologia.

O tema da maternidade é sondado sem meias palavras, é revirado pelo avesso, é problematizado em suas múltiplas ramificações. Nada de idealismos conformistas, de sentimentalismos românticos, dos lugares comuns que enaltecem a mulher, a mulher mãe, escamoteando sua complexa realidade ou mesmo a sua natureza humana, em sua dialética existencial. Contraditória, ambígua, multiforme.

Desde o primeiro capítulo ao último, são vários os recursos estilísticos e fraseológicos em que a voz narrativa questiona os fatos, no calor de sua singularidade, para fazê-los ecoar no cenário mais amplo dos apelos universais que a todos pertencem em sua condição humana. Citarei alguns exemplos, a título probatório:

“{…} Nascer parecia mesmo com morrer. Uma passagem de um estado a outro, uma grande surpresa, um acabar de mundo”, p. 19; “{…} começava ali meu fim de mundo, minha morte, meu renascimento”, p. 20; “Nina tinha me avassalado. Difícil demais, a maternidade. Um caminho desembestado e sem volta sobre papéis revirados pelo chão”, p. 67-68; “{…} Não é um amor fácil, o que sinto por ela. Parece uma luta, algo que me corta, que me atravessa, mas quero levar adiante porque é bom”, p. 71; ; “{…} Sim, eu também nascia. Passava de um ponto a outro, irretornável, da minha existência, atravessada pela existência dela”, p. 74, e “Era nossa travessia”, p. 74.

Eis a fala da mulher em sua situação limite. O olhar feminino na sua aguda sutileza, na sua peculiar e intransferível capacidade de mensurar as coisas. Eis uma tradição literária que vem se configurando com solidez e brilho e onde podemos localizar figuras paradigmáticas, a exemplo de Katherine Mansfield, Virgínia Woolf, Anais Nin, Susan Sontag, Annie Ernaux e Elena Ferrante, só para citar algumas que, certamente, Ana Lia Almeida deve conhecer.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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