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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Ao inteligente, poucas coisas

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publicado em 23/04/2023 às 07h35

O latim, sendo uma língua sintética, tem uma precisão muito maior do que a língua portuguesa, cuja natureza é espraiar-se perifrasticamente, revelando certa adiposidade linguística. O título desse texto é a tradução minimalista, mas não menos profunda e inteligível de um dito latino que tem apenas duas palavras – intelligenti pauca. Como muitos não conseguiriam entender a tradução de duas palavras por quatro, “ao inteligente, poucas coisas”, foi necessário “engordar” a frase em mais três palavras, tornando-a “Para o bom entendedor, meia palavra basta”.

O problema está no termo “entendedor”, que não traduz, necessariamente, “inteligente”. Alguém pode entender alguma coisa e não ser inteligente, e vice-versa. Entender é tender, dirigir-se para uma determinada direção (in + tendo, tendĕre); já inteligência é necessariamente o que se compreende, o que se conhece, o que se discerne e, sobretudo, entre todos os significados, escolhe aquele que é o apropriado à situação, pois temos um verbo derivando tanto do latim, como grego (λέγω), “lego”, “legĕre”, que vai resultar, em português, no verbo “ler”, mas cujo primeiro sentido, sendo um vocábulo ligado ao mundo agrícola, é “colher” e “escolher”. “Inteligenti pauca” deveria ser, então, “para aquele que sabe escolher entre os sentidos e colher o sentido apropriado, poucas coisas são necessárias”.

É assim que no seu sintetismo, o latim também diz “Tibi tua”, àqueles que ousam dar conselhos aos outros, mas que não têm o que se pode chamar de uma vida apropriada para isto, pois as suas ações não condizem com o que sai de suas palavras. É algo como “As tuas coisas, guarda-as para ti” ou “Os teus conselhos, segue-os tu mesmo”, numa tradução mais livre.

Há mais de 50 anos que o meu trabalho diário, como professor de língua e de literatura, é tentar compreender a língua, na sua estrutura, e mais ainda a linguagem. Se a língua é o esqueleto, a linguagem é a carnação. O esqueleto pouco varia, necessitando de muito tempo para que isso ocorra. Já a carnação é dinâmica, ganhando diversas formas, mas guardando a essência da estrutura/esqueleto. Quando à carnação se junta o espírito, que é a estilística, o discurso torna-se mais complexo, sendo mais trabalhoso compreendê-lo, necessitando de interpretação, para se entender as suas diversas camadas. Se não fazemos isto, corremos o perigo de ficar numa linearidade tão enganosa, quanto simplória, repetindo paráfrases pobres e sem sentido, como se fossem verdades inabaláveis.

Dois outros ditos latinos nos ajudam a compreender a natureza da língua. O primeiro é “Roma locuta, causa finita”, cujo significado é “Roma falou, a discussão acabou”. O nosso popular “falou, está falado e não há mais discussão sobre isto”. Ora, isto é a expressão acabada do autoritarismo que Roma podia exercer diante do mundo, de que ela foi a cabeça – “Roma caput mundi”. Nos tempos modernos, e em sociedades que são realmente democráticas, esta expressão está condenada, pois todos devem ter direito a se expressar. Podemos gostar ou desgostar, mas devemos sempre garantir o direito de alguém exercer, sem cerceamento, a sua liberdade de expressão. O direito de discordar, Roma já não existindo, é tão sagrado quanto o direito de dizer. Querer calar as pessoas no seu direito de expressão, com palavras melífluas ou com sofismas não está certo. Devemos garantir, não importa o meio em que seja dito, este direito, sobretudo porque sabemos que a tentativa de mordaça não é sobre o que se diz, é sobre quem aquilo se diz.

É aí que entra o último dito latino – “Ne sutor ultra crepidam”. Valério Máximo conta que o pintor Apeles colocou uma de suas obras para apreciação pública. Um sapateiro, que passava, encontrou um defeito na sandália da figura pintada e fez uma observação, o que foi acatado pelo pintor. Entusiasmado, o sapateiro quis dar sua opinião sobre outros detalhes da obra, e Apeles teria respondido: “Não vá o sapateiro além da sandália”. Ora, o que mais vemos, em relação à língua e à linguagem, sobretudo literária, são sapateiros indo além da sandália. Com a capilaridade e a facilidade das redes sociais, as pessoas dão opinião sobre tudo e explicam “como a luz acende e como o avião pode voar”. Elas devem ser silenciadas? Não. Elas têm o direito de dizer e de opinar, mesmo sem conhecimento de causa. Eu posso discordar, argumentando, não tentando silenciá-las.

É com o amplo debate, mantendo o livre direito de expressão , que podemos ajudar a edificar um mundo em que as construções das falsas narrativas sejam reveladas e denunciadas em todas as suas nuanças.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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