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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Um poeta, uma pesquisadora

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publicado em 16/11/2022 às 07h00
atualizado em 15/11/2022 às 13h45

“Só me lembro de fragmentos. A memória é, inevitavelmente, algo sempre recriado”. Eis a epígrafe que o poeta Geraldo Fidelis da Silva toma de empréstimo a Haruki Murakami, em seu livro Tear da memória. Já para epigrafar O poeta parvo, vale-se das seguintes palavras de Patti Smith: “Por que escrevemos? Irrompe um coro./Porque não podemos somente viver”. Ambas as coletâneas integram um só volume, em edição da Arte rika, João Pessoa, 2018.

A série de poemas do primeiro parece se conduzir pela diretriz semântica da epígrafe citada. Cada texto como que se constitui num pequeno fragmento lírico que impulsiona a tecelagem da memória pelo rito da criação e da recriação de instantes, de paisagens, de lugares, de criaturas, de coisas e fenômenos, a compor um tapete mágico de lembranças que se cristalizam na possibilidade do poético. De um poético tecido pela naturalidade da palavra simples, do verso cadenciado e da percepção emotiva atenta ao fluxo da recordação essencial, como podemos verificar, por exemplo, no poema “Ourives” , em seu andamento afetivo: “Juca Policarpo,/meu avô materno,/era ourives./Em sua tenda misteriosa/concebia peças/do mais fino lavor. {…} Ah… meu avô construía memórias!”.

O afeto, é verdade, comanda esse périplo por dentro do coração. Geraldo Fidelis é um poeta que não teme a pressão dos sentimentos subjetivos na tentativa de convertê-los em sentimentos estéticos. O tom testemunhal, comum ao lirismo que se confessa, às vezes cede espaço para um timbre de cariz mais reflexivo, presente em textos, como Á sombra do tempo”, a exemplo de sua última estrofe (“Quem sabe, no fundo/mentiras sejam memórias/verdades, meras histórias”).

Em O poeta parvo, a metalinguagem imprime o ritmo e a ideação na tessitura dos poemas. Destaco “Para além do texto”, sobretudo pelo vigor e pela originalidade da metáfora final, senão vejamos: “Para além do texto/do verso, da metáfora/do parêntese, das aspas/do assombro // a rota do olhar vesgo/o som cru de uma guitarra/o peso infame da caspa/nos ombros”.

Memória e metalinguagem definem, assim, a dicção lírica deste poeta, para integrá-lo numa tradição expressiva da modernidade, precisamente aquela que adota a palavra singela e o conteúdo emotivo sob o controle e a medida da razão literária.

Geraldo Fidélis não é um estreante. Já publicou dois livros nos anos 80: Sol e mercúrio (1983) e Garoa (1985). Mineiro que viveu em São Paulo e Porto Alegre, hoje radicado em João Pessoa. Mesmo que tenha passado 32 anos sem publicar, certamente vem cultivando o gosto de se exercitar na fatura da palavra poética, como nos comprova com esse volume de dois livros conjugados.

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Maria do Socorro Silva de Aragão (foto) estabelece um outro percurso, tendo, na pesquisa literária, o seu foco de atuação principal. De um lado, a investigação lexicográfica e filológica, associada à reflexão acerca de temas linguísticos; de um outro, o rastreamento biográfico de nomes decisivos no universo da literatura brasileira moderna e contemporânea, a exemplo de José Lins do Rêgo, José Américo de Almeida e Augusto dos Anjos.

Dados biobibliográficos, fortuna crítica, fotobiografias, vocabulários, regionalismos linguísticos, oralidade idiomática, tudo se conjuga sob o olhar analítico da professora, voltada, em especial, para o tecido da linguagem enquanto componente fundamental das obras e dos autores.

O mais recente fruto do princípio organizador, do domínio do conteúdo e da capacidade de pesquisa, que regem a sua intervenção intelectual, se materializa no Dicionário da obra de Augusto dos Anjos (João Pessoa: Midia Gráfica Editora, 2020). Obra de referência que traz a assinatura de seu confrade na APL – Academia Paraibana de Letras -, o professor Milton Marques Júnior, numa Apresentação de nítido caráter ensaístico, intitulada “O léxico de Augusto dos Anjos: uma expressão que não chegou à língua”.

Verdade. Essa expressão, moldada numa sintaxe, numa semântica e numa metrificação heterodoxas, se impõe como linguagem, e como linguagem eminentemente poética, em acendrado e permanente conflito com os limites vocabulares e canônicos da língua.

Antônio Houaiss já chamava a atenção dos leitores e dos estudiosos da poesia de Augusto dos Anjos para a necessidade de um dicionário que pudesse esclarecer as especificidades dos muitos termos filosóficos e científicos que invadem a áspera melodia de seus versos. Francisco de Assis Barbosa e Manuel Cavalcanti Proença também se preocuparam com o problema, tocando em pontos essenciais daquilo que poderíamos chamar de o idioleto anjelino. Maria Helena da Cruz Silva e Anice Brito Lira de Oliveira também deram sua contribuição com o Vocabulário poético do Eu: glossário, publicado pela APL, na Coleção Literatura Viva, em 1986.

Em seu dicionário, Socorro Aragão amplia o espectro lexical ao mesmo tempo em que intenta a tradução dos termos dentro dos versos, permitindo, assim, ao leitor, o acesso aos significados denotativo e conotativo das palavras. A citação do verso e a indicação do poema nos quais se encontram o vocábulo, por sua vez, facilitam o processo de consulta e auxilia, sem dúvida, a análise e a interpretação do texto.

Na qualidade de obra de referência, não poderia faltar o espírito didático e pedagógico a compor o itinerário cognitivo de esforços como esse. Se existem dificuldades no contato com a linguagem do poeta do Tamarindo, sobretudo quando se pensa no leitor jovem, no estudante e naqueles que se iniciam na aventura  de atravessar a floresta de signos do Eu, tais dificuldades podem ser atenuadas com as lições introdutórias desse dicionário, em tudo louvável e oportuno.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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