João Pessoa, 28 de agosto de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Tenho o Ulisses, de James Joyce, nas três traduções para o português do Brasil. A de Antônio Houaiss, a de Bernardina Silveira e a de Caetano Galindo. Deste, inclusive, também possuo um pequeno e utilíssimo manual introdutório ao famoso romance do genial irlandês, intitulado Uma visita guiada ao Ulisses de James Joyce, de 2016, em edição da Companhia das Letras.
Não foram poucas as vezes que comecei a ler esse grande romance, mas, a bem da verdade, esbarro aqui e ali, num trecho qualquer e desisto. O tédio, a dificuldade, o desconforto diante de certas passagens parecem me afastar, não digo definitivamente, pois detesto certezas e atitudes ditas definitivas, desse desafio monumental.
O problema é que sempre fecho o volume e o recolo em seu lugar na estante. Houve um tempo em que sofria muito com isto. Hoje, nem ligo mais. Seguindo o exemplo de Montaigne, se o livro não me agrada, não sinto o menor constrangimento em deixá-lo de lado. Quem sabe, um dia desses, consiga devassá-lo por inteiro com aquele inadiável prazer que a boa leitura nos proporciona.
Em compensação, já li os 7 volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, nas traduções de Mário Quintana, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Lúcia Miguel Pereira, em edição da Globo, numa leitura lenta, refletida e compassada, ao mesmo tempo prazerosa e inquietante.
Aliás, sempre que quero, e quero quase sempre, estou voltando às suas páginas para rever passagens grifadas ou sublinhar as novas que me comovem ou me perturbam. Proust, como Dostoievski, Kafka, Herman Hesse, Thomas Mann e Felipe Roth, entre outros, tem me ensinado a lidar melhor com o mistério da vida e com o imponderável da condição humana.
Acredito que tais escritores exigem leitura permanente, uma convivência íntima e especial. Seus temas, seus personagens, suas ideias, situações e conflitos existenciais como que integram o tecido de minha subjetividade, ajudando-me, talvez, a compreender melhor os enredos incontornáveis que envolvem os dilemas entre bem e mal.
Não faz muito tempo, venho lendo simultaneamente os três Sertões, isto é, o de Euclides da Cunha, o de Guimarães Rosa e o de Ariano Suassuna. Não faço uma leitura linear como aquela que fiz de cada um deles quando os li devorado pelo êxtase da primeira vez.
Minha leitura agora é partida, fragmentada, circular… Abro Os sertões, de Euclides e leio um ou outro capítulo, em geral de “A terra”, a parte que mais me atrai e mais me impressiona. Vejo, nela, uma grande personagem dramática, tão dramática como as personagens de “O homem” e da “Guerra”, ou como o trágico destino do próprio Antônio Conselheiro.
Depois me pego num trecho qualquer do Grande sertão: veredas, ou num dos capítulos-folheto de A pedra do reino, e sinto a diversidade do sertão enquanto região geográfica e símbolo literário.
O sertão, de Euclides, é seco, solar e físico. O sertão de Guimarães Rosa é úmido, verde e metafísico. O sertão de Ariano é pardo, pedregoso e mítico. São diferentes, portanto, porém, alguma coisa os irmana e os identifica. Quero crer que seja a sua presença mágica e concreta na configuração do contexto narrativo e na estranha psicologia dos personagens.
Não posso pensar o Conselheiro, João Abade e tantos outros que habitaram as margens do Vaza-barris, sem o sertão, sua paisagem e sua história. Não posso imaginar Riobaldo e Diadorim, sem o sertão, seus ritos e arquétipos, assim como sem o sertão, seus assombros e mitografia, não posso vislumbrar o drama de Quaderna, Clemente e Samuel.
Refiro estas obras da literatura brasileira, como fiz referência a Em busca do tempo perdido, para deixar bem claro que não é o tamanho do exemplar, o número de páginas nem a complexidade temática do livro que me são obstáculos intransponíveis.
Há qualquer coisa de inexplicável na experiência da leitura. Certa inaptidão, certo desencontro, certa incapacidade. Isto talvez explique por que sempre abandono o Ulisses e sempre faço a viagem de volta aos sertões.
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SOLENIDADE EM BRASÍLIA - 11/12/2024