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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

    O sofrer de uma ingratidão

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publicado em 16/08/2022 às 07h00
atualizado em 15/08/2022 às 15h26

Já vi num para-choque de caminhão: “Quem nunca sofreu uma ingratidão é porque nunca fez o bem”.  Ontem, na hidroginástica, houve uma comemoração de despedida marcada por emoção, para Ayla, que estava frequentando a aula pela última vez. Ela dizia:” Fazer hidroginástica é a única coisa que hoje me faz feliz”.  Heloise, a professora, preparou a festinha coletiva em que todos colaboraram nos comes e bebes. Os colegas fizeram questão de demonstrar seu carinho, seu amor e quanto era querida pelo grupo. Manifestavam o sentimento de saudade que ia deixar com sua ausência, e, para registrá-lo, cada um levou um presente afim de que lembrasse dos amigos e fizesse aquele último momento inesquecível. Ayla ia morar em outro bairro distante e ficaria inviável sua locomoção até ali, pois, atualmente, sua casa situava-se na mesma rua da Academia, o que a permitia ir a pé, sem nenhuma dificuldade.

Ao apreciar aquela festa bateu-me a curiosidade de conhecer mais profundamente a vida de Ayla.  Heloise relatou-me uma triste história.  Foi surpresa. Na aparência ela era uma pessoa feliz, que estava sempre alegre, cooperativa, brincalhona e cheia de vida, com 84 anos, o que não aparentava. Nos exercícios não havia limitações, sempre mostrava disposição de executá-los.  Hoje se encontra viúva de um casamento de 50 anos, bem vivido, como ela disse:” de felicidade plena”.  O esposo foi jogador de futebol. Jogou em clubes de João Pessoa e de Recife. Durante esse tempo acompanhava-o e participava intensamente de sua vida. Teve dois filhos, uma filha e um filho. Dedicou-se e viveu para eles. O homem formou-se em administração, arranjou um emprego em São Paulo e foi embora.

A mulher formou-se em ciências contábeis. Ayla fez o ensino médio, não teve oportunidade de prosseguir os estudos, pois teve de dedicar todo o seu tempo à família. A situação financeira não permitia que tivesse mordomias, tanto que viveu para o lar, integralmente dedicada às crianças e depois adultos e encaminhados. Guilherme aposentou-se. Nessa época, usufruiu da vida com seu marido. Iam à praia, passeavam, frequentavam festinhas e casas de amigos. Ayla falou para Heloise: “Há seis anos, quando fomos dormir num sábado fazendo planos de laser para o domingo, pela manhã, acordei primeiro para fazer o café e ao terminar fui chamá-lo. Guilherme, não respondeu. Quando insisti e sacudi seu corpo ele estava morto. Entrei em desespero. Ali ia minha vida também. Foi embora tudo de bom que tive, passei e vivi com ele, sem nem dizer adeus. Nossos momentos na praia, quando íamos pela manhã e voltávamos de taxi à tardinha, são inesquecíveis. Tomávamos nossa cervejinha.

Era uma vida simples, mas nós éramos felizes.” Ela acrescenta que logo depois de sua morte ficou depressiva, não queria sair e nem se movimentar. Depois de uns anos viu que não ia, mas trazê-lo de volta, e se ele estivesse vivo não a queria assim. Retomou sua vida; sair e participar de eventos e reuniões de amigos etc.

Ayla, com a depressão e a solidão da viuvez, procurou ficar ao lado da filha, separada do marido, que havia convencido a vender sua casa e um terreno para ir morar com ela. Acreditava que aquela situação daria um alento à solitude que enfrentavam, mas foi um engano. Logo após instalar-se na nova morada, a sua vida ficou conturbada. Os hábitos e costumes adotados pela filha na convivência dificultavam o relacionamento. A falta da atenção, desprezo e carinho a entristeceram e fizeram-na repensar as atitudes tomadas, arrependendo-se. Seu filho que estava em São Paulo tinha sofrido dois AVCs, não podia socorrê-la.  E agora? A situação estava difícil. A filha fez uma viagem para o exterior e pediu seus cartões. Durante a ausência da filha foi ao banco para verificar sua situação financeira se valendo das amizades que tinha e com espanto verificou que o dinheiro poupado a vida toda, inclusive o da venda dos bens, tinha sumido de sua conta. Ao chegar de viagem, abordou a filha que a tratou mal e com ignorância. Contrariada chegou a desmaiar.

Com a problemática existente Ayla constatou que estava inviável morar com a filha. Pediu que devolvesse os cartões de crédito. Comunicou que ia deixar a casa esperando que a filha impedisse, porém a reação foi de aceitação ouvindo que era isso mesmo para ser feito.  Na semana que vem muda-se para uma casinha de vila perto de uma amiga, num bairro popular, levando consigo somente as poucas roupas que tem. Dela nada resta. Desfez-se de tudo. Falou que nos primeiros dias a amiga daria apoio e as refeições até a situação acomodar-se. Daí o motivo da festinha realizada na aula de hidroginástica em que Ayla chorou e comoveu a todos presentes, que conheciam sua situação. O gerente da Academia disse para ela: “quando desejar aparecer, a Academia está liberada e será bem-vinda”.  As colegas e amigos da sala resolveram que assim que Ayla instale-se na nova casa, se cotizarão e irão dar o básico que necessita.

Vejam essa história tão triste que nos leva a refletir como age o ser humano? Uma mãe que abdicou de sua vida em prol dos filhos, que graças ao seu esforço para criá-los, conseguiram estar todos bem. Percebia-se na festa que embora alegre não disfarçava o que havia em seu íntimo, acuada pela dor do sofrimento da ingratidão que machucava seu coração. Ali estava a sensação do fracasso diante de tanto amor e dedicação que parece não ter valido a pena. Nessa altura não adianta questionamentos nem reclamações inúteis. Só resta caminhar em frente e mudar a atenção. O afeto e carinho das pessoas que a rodeiam, como é o caso da sua amiga que a acolheu e os colegas solidários, lhe darão as condições de iniciar essa nova etapa de vida. O que será de Ayla? Só Deus sabe.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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