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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

A árvore de Augusto

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publicado em 20/04/2022 às 07h00
atualizado em 19/04/2022 às 13h22

Leitor de Augusto, sempre imaginei o Eu como uma árvore esplêndida e frondosa, espécie de sombrio tamarindo de muitas desventuras.

Se árvore, portanto, as raízes estão fincadas no húmus enigmático da existência, na terra roxa e orgânica da várzea do Paraíba, ao lado das botijas de sonho que o tempo não despedaça.

Raízes que vêm de longe, mescladas ao observatório do imponderável e à gordura verde dos vetustos vegetais que resistem ao imperativo da modernidade, com suas máquinas e tecnologias assépticas e destruidoras. Raízes poéticas que brotam do toque concreto da vida e das coisas, mas também dos conceitos filosóficos e científicos entrecenados e entretecidos nos liames imprevistos de cada vocábulo. Raízes perfurantes que rasgam a carne da ruína e cobrem, com o manto espesso do sublime, o evangelho sagrado da podridão. Raízes, raízes, raízes…

Para mim, o caule, tronco escuro e iluminado, corresponde aos dois poemas maiores do livro: “Os doentes” e “As cismas do destino”. Longos, narrativos, tensos e politemáticos, estes dois monumentos destilam uma seiva aguda e energética que vai alimentar o corpo e a alma de todos os outros poemas agasalhados em suas fibras fortes.

Alicerce dos galhos grossos, a meu ver, bem distribuídos por poemas, como “Monólogo de uma sombra”, “Gemidos de arte”, “Noite de um visionário”, “A ilha de Cipango”, “Poema negro”, “Queixas noturnas”, “Insônia” e “Tristezas de um quarto-minguante”, o caule parece definir o destino ambíguo dessa poesia incomum.

Desses galhos dotados de uma força estranha, que se entranha e se multiplica pela agônica musicalidade dos versos e pela bizarra beleza das imagens distorcidas, se distendem os ramos, as folhas e os frutos como num festim diabólico onde, numa espécie de céu pelo avesso, a coisa mais ínfima, o bicho mais rasteiro, o objeto mais feio, a nódoa mais abjeta, o verme mais pútrido adquirem o brilho da dignidade. E isto é genuína poesia. (Só na poesia todas as coisas ganham legítima dignidade).

“O morcego”, “Psicologia de um vencido”, “A ideia”, “Debaixo do Tamarindo”, “Budismo moderno”, “Solilóquio de um visionário”, “Vozes da morte”, “Soneto II” (ao pai morto), “A árvore da serra” e “Vandalismo” constituem, entre outros, estas folhas e estes ramos prenhes de frutos de variegado sabor, dos mais doces aos mais acres, porém, sempre injetados pelo sangue da vida.

Penso, aqui, sobretudo, naqueles versos que só Augusto dos Anjos soube compor, no seu raro poder de criar correlativos objetivos tão surpreendentes, tão desnorteantes e tão perfeitos. Vou dar um exemplo que sempre me comove. Está lá nos “Gemidos de arte”, quando o eu poético refere a figura anônima do “finado Tôca”. Vejamos:

“Não sei que subterrânea e atra voz rouca,

Por saibros e por cem côncavo vales,

Como pela avenida das Mappales,

Me arrasta à casa do finado Tôca.

Todas as tardes a esta casa venho.

Aqui, outrora, sem conchego nobre,

Viveu, sentiu e amou este homem pobre

Que carregava canas para o engenho”.

E, mais adiante, para enfatizar a atmosfera física e material da solidão associada à força deletéria do tempo, numa imagem emblemática do abandono, Augusto põe em cena, dramatizando seu olhar, umas simples lagartixas:

“O lodo obscuro trepa-se nas portas.

Amontoadas em grossos feixes rijos,

As lagartixas dos esconderijos

Estão olhando aquelas coisas mortas”.

Aquelas coisas mortas, no entanto, continuam vivas no tecido elástico e indestrutível da palavra poética. Esta árvore, a árvore do Eu, como aquela “árvore da serra”, também possui a minha alma de leitor apaixonado. Leitor que faz, não raro, das imagens do poeta do engenho Pau d`Arco um precioso brinquedo de recitação interna, ou seja, de uma respiração essencial.

Vejo-me, por dá cá aquela palha, a cochichar para mim mesmo estes versos cabalísticos e sagrados reunidos aleatoriamente numa encantatória bricolagem: “E eu sinto a dor de todas essas vidas ∕ Em minha vida anônima de larva”; “Há um cansaço no Cosmos… Anoitece”; “E a mosca alegre da putrefação”; “A minha sombra há de ficar aqui”; “Como Elias, num carro azul de glórias, ∕ Ver a alma de meu pai subindo ao céu”, e “Mas o agregado abstrato das saudades ∕ Fique batendo nas perpétuas grades ∕ Do último verso que eu fizer no mundo”.

(Augusto dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884. O colunista presta sua homenagem, neste dia memorável).

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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