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A latinha de refrigerante

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publicado em 07/03/2022 às 06h50

A latinha de um famoso refrigerante acabara de ter todo o seu conteúdo sugado, sorvido com sofreguidão por um alguém qualquer. Era mesmo um qualquer alguém, como todo alguém de uma história que não possui nome, corpo, alma, nada. Aliás, como o próprio conteúdo que acabara de consumir. Ele era somente um alguém que bebeu todo o conteúdo de uma latinha de refrigerante e que jogou-a no chão de uma movimentadíssima rua desta cidade. Como esta é uma história, e histórias fictícias não precisam ter uma relação visceral com a realidade, digamos que foi naquela mais barulhenta que você possa se recordar.

Caro leitor, se ainda me aguenta escrevendo sobre uma latinha de refrigerante – e ainda mais sobre uma latinha de um refrigerante famoso, do qual não dou o nome para não fazer propaganda gratuita, mas que todos imaginam qual seja – escolha uma dessas ou outra rua qualquer desta ou de outra cidade. Mas precisa ser bastante movimentada. Movimentadíssima!

Bom, a latinha ficou ali largada no chão, vazia, ao relento, triste, acabrunhada. Seu dono efêmero não a quis mais depois de comprá-la por alguns reais do antigo dono, que também não havia ficado muito tempo com ela. Nunca pôde ser dona do seu próprio nariz, embora nariz jamais tivesse. O alguém qualquer, ou seja, o seu dono por pouquíssimos minutos, sugou todo o seu conteúdo e a jogou fora, como se ela fosse um alguém qualquer e não ele. A latinha estava desolada, achando que jamais conseguiria se recuperar, quando um outro alguém qualquer deu-lhe um pontapé no traseiro – embora traseiro ela também nunca pudesse ter. O chute foi tão forte que ela foi parar no meio do asfalto dessa tal rua movimentadíssima.

Da desolação ao desespero foi um pulo de poucos segundos. Agora não poderia mais se preocupar em ter um conteúdo, algo dentro de si, precisava tratar – e urgentemente – de sobreviver. Precisava escapar desesperadamente daqueles carros que passavam a toda velocidade pela rua. Não podia ser amassada, não podia ser estragada de vez por uma imensa roda de ônibus ou de um carro qualquer. Era muito difícil escapar naquelas circunstâncias, afinal os carros passavam a toda hora. Escapou pela primeira vez por debaixo de um ônibus, mas logo em seguida vinha um carro atrás e ela passou raspando pela roda direita dianteira do veículo. O vento a levou rolando para bem longe, onde a intensidade de carros era maior. Fazia um esforço sobre-humano – até porque humana nunca fôra – para escapar ilesa, somente com pequenos arranhões, a esta altura inevitáveis.

Os carros iam passando, e a latinha heroicamente se livrava diversas vezes por muito pouco de ser esmagada por uma roda qualquer. Numa dessas escapadas heróicas, ela aproveitou o embalo do vento para tentar subir na calçada, o que quase conseguiu. “Ah, se tivesse mãos e pernas!”, pensaria ela, se gente fosse. Já que não pôde se agarrar ao paralelepípedo para se salvar, a força do movimento dos carros a levaram novamente para o centro do asfalto. E novas e heróicas escapadas fizeram dela um personagem merecedor de entrar numa história – pelo menos no meu entender – até que quando finalmente parecia que se livraria de todo sufoco, um buraco de bueiro aberto apareceu-lhe pela frente.

Porém, a velocidade que vinha era tão grande que acabou conseguindo parar finalmente no centro da calçada, bem distante daquela em que estava no início da história. Já estava mais alegre por ter conseguido sobreviver, quando um outro alguém qualquer a avistou e a pegou sem muitos cuidados e a colocou de pé. Ela deve ter imaginado que finalmente alguém a trataria com carinho. Mas que nada! Logo esse alguém qualquer a pisou impiedosamente, juntando de uma só vez a base à parte de cima, por onde havia saído todo o seu tão prestigiado conteúdo. Foi jogada num saco com outras amigas esmagadas para ser reciclada e transformada em outra lata. Jamais voltaria a ser a mesma.

Visite o blog Eduardo Lamas: www.eduardolamas.blogspot.com
E a página do autor e seus livros publicados: https://url.gratis/SFc37Q

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