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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Viva o povo brasileiro!

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publicado em 05/01/2022 às 07h25

Escovinha pra cabelo, um real. Agulha pra limpar fogão, dois reais. Caderneta com Jesus na capa, três reais. Diademas, pulseirinhas, lacinhos, pentes e espelhos, de todo preço, a unidade.

Senhor, não vendi nada hoje. Ainda nem tomei café, e já são quase onze horas.

Sua idade, senhora?

76 anos, e Deus por mim, senhor.

Compro dois pentes e um espelho. Dou dez reais e dispenso o troco.

Feliz Natal, senhor. Que Deus o guarde e zele por sua família.

Quase meio dia na feira de Oitizeiro. Na barraca de Mary.

Cerveja gelada e picado de bode com cuscuz e macaxeira. Ao fundo, a voz embargada de Reginaldo Rossi, num daqueles bregas de cortar as veias do coração, e, nem sei por que nem pra que, duas morenas dançando… Dançam, livres e libertinas, sem amargura nem esperança.

Que povo forte e corajoso o meu! Que povo de fibra! Que povo alegre! Vale, sim, o belíssimo título de João Ubaldo Ribeiro, “Viva o povo brasileiro”, na opinião de José Guilherme Merquior, um dos melhores romances da literatura brasileira.

E ainda ontem eu ouvia a notícia dos bilhões do orçamento. Muita grana para os partidos políticos! Que país é este? O Congresso Nacional, um covil de aves de rapina! O Executivo, uma quadrilha chefiada por um louco e genocida!

Entre um gole e outro, alguém me pedia uma ajudinha pra almoçar, pra votar pra casa, pra comprar o remédio da filhinha doente, pra tirar o desjejum do dia, pra tomar uma ou duas, que ninguém é de ferro!

Lea, de dentro da barraca, prepara os pratos de rabada com inhame, e Joelma, joia da feira, serve a quem quer os pratos, as bebidas e os sonhos.

Fosse um Gabriel Garcia Márquez, fosse um Julio Cortázar, fosse um Francisco Bolano, escreveria um conto mágico, para incensar, com os cheiros rudes da vida, esse domingo sem tréguas. Ou então, para narrar a súplica decidida do olhar de Joelma diante do milagre da vida.

Mas a minha, a minha vida, nunca teve magia. Sempre fiz versos com os galhos secos da caatinga e com os cabelos cor de cinza de Rosa e Ludmila. Tudo foi sempre árido e áspero como aquele bico de pedra, banhada pelo vazio do céu.

Joelma parece que tem a salsugem do litoral e uma ponta de sabedoria que mira o indefectível dos abismos. Nunca caberá no meu verso. Suas águas devem ter o clamor dos vulcões e certo sabor daquilo que se perde para sempre, se nelas o navegante ousar qualquer viagem.

Linda mesma é a feira, com sua coisa em si, com sua poesia de ouro, com suas novelas fantásticas, pesar de tanta pobreza!

Nesse domingo nem fui aos pássaros nem à morfologia das trocas. Fiquei pelo aceiro, comprei abacaxi, banana, melão, mamão e amendoim, quase de graça, que, nessas feiras livres, ninguém ganha dinheiro. Apenas garante mais um dia na anódina existência.

Troco este relógio por qualquer coisa. Pague meu lanche, abençoado! Só volto pra casa quando vender tudo. Tudo por trinta, por vinte, por dez… Agora é de graça! Pague só o que quiser e o que pode.

Domingo estarei aqui de novo. Não por acaso. Por necessidade.

Todo domingo é triste. Mas viva o povo brasileiro!

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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