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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Para o trabalho intelectual, nada?

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publicado em 26/09/2021 às 12h53
atualizado em 26/09/2021 às 09h54

Como dizia minha mãe, amanheci com a braguilha para trás. Desde ontem que rumino sobre um fato e, agora, vejo chegada a hora de colocá-lo para fora, não de acomodá-lo, como tantas vezes já fiz. Afinal, o trabalho intelectual deve ser remunerado ou não? Ao menos aqui na Paraíba, a resposta é um sonoro e redondo NÃO! Continuamos com a ideia obsoleta de que o trabalho desenvolvido por professores e especialistas em artes e humanidades não deve ser remunerado. Basta um convite feito e um obrigado formal, nem sempre pronunciado, para dar satisfação a quem desenvolveu a tarefa para a qual foi “honrosamente” convidado. Já passou da hora de mudarmos essa situação.

De modo a situar o leitor, direi os milagres, mas não direi os santos, embora, em nossa aldeia não haja cobertor para tanto. Aqui não se descobre um santo para se cobrir outro. Na nossa velha Parahyba, todos os santos estão a descoberto. Vamos aos fatos. Uma empresa se junta a uma fundação para promover um concurso literário, de modo a homenagear o patrono da fundação, o que acho muito relevante. Tudo o que pudermos fazer para reavivar a memória cultural é bem-vindo. Para que o concurso aconteça, há necessidade de um júri, de modo a assegurar quem são os vencedores nas categorias de romance, conto, crônica, poema e literatura infanto-juvenil, a partir de uma “justa avaliação e julgamento das obras inscritas”. Nada mais justo e mais democrático.

O júri, obviamente, deve ser formado por quem tenha um conhecimento do que é a estrutura de obra literária, como escritores e, mais precisamente, professores de literatura. Até aí, está tudo dentro do planejado. O problema que me indigna é que, até onde eu sei, nem a empresa, nem a fundação falam de remuneração. Estabelecem prazos curtíssimos, que vão da abertura do concurso à sua premiação, exigem o cumprimento dos prazos e mais nada. É uma adoção canhestra de Camões: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alta se alevanta”. Isto é, eu tenho que parar tudo o que estou fazendo e que resulta na minha remuneração, para fazer um trabalho mais urgente, imposto por quem não vai me remunerar. Na mentalidade predominante na terra do maior poeta brasileiro e um dos maiores do mundo, Augusto dos Anjos, o trabalho intelectual não é valorizado. Devem pensar que só a leitura dos originais será a causa de uma fruição suprema e que não há horas gastas em ler, anotar, comparar, escrever um texto, argumentar a favor ou contra as obras lidas.

Esta é a mesma mentalidade que contribui para a desvalorização do professor, visto como alguém que se resume a dar aulas, esquecendo e ignorando que, por trás da aula, existe todo um tempo dedicado ao conhecimento, cumulativo, de anos, e que a aula é o resultado dessa dedicação. Pois é, não é coincidência, nem à toa que, em latim o verbo “estudar” (studeo, studēre) significa dedicar-se.

Como profissional das letras, professor há 45 anos, recuso-me terminantemente a participar de atividades, que exijam o meu conhecimento, sem remuneração. Posso até fazê-lo, mas que resulte de uma vontade minha, espontânea. Não posso entender como uma fundação e uma empresa não possuem verba para remunerar quem vai trabalhar para ela, ainda que seja eventualmente. Não sei se o prêmio do concurso é apenas a publicação, se haverá também dinheiro. O que sei é que quem trabalha para viabilizar o concurso deve receber ou, então, não se crie o evento. Citando novamente minha mãe, quem não pode com o pote (foto) não pega na rodilha.

Para finalizar, digo que sou colaborador contínuo há dez anos do Correio das Artes, não recebo nada, como os demais. Mas para que eu receba o suplemento, tenho que ir procurá-lo nas bancas de revistas ou, como procedi, fazer uma assinatura do jornal A União. Trabalhando sem remuneração – mas é uma decisão minha –, sequer recebo o Correio das Artes em casa. E não foi por falta de esforços do antigo e do recente editor, é que, ao que me parece, não há uma política de continuidade, de modo a valorizar o trabalho intelectual. É como se eu fosse o beneficiário de um favor todo especial: ter o meu texto publicado. Inverte-se, mais uma vez, a lógica. A revista existe por causa dos escritores, não é o contrário.

Enfim, tendo acabado de recusar também a participação em um evento sobre o Barroco, declaro com todas as letras que não mais participarei de eventos institucionais, a não ser os da instituição em que trabalho e de onde retiro o meu sustento, a UFPB, sem ser remunerado e bem remunerado, porque quando essas instituições vão buscar alguém de fora, pagam a peso de ouro o serviço prestado.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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