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Médico. Psicoterapeuta. Doutor em Psiquiatria e Diretor do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba. Contato: [email protected]

Ainda é São João

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publicado em 29/06/2021 às 07h37

Eu fiquei tão triste. Eu fiquei tão triste naquele São João. Não tristeza de ficar em casa. Não tristeza pelas restrições, poque temos que ser compassivos com aquilo que não podemos realizar nesse exato instante. A formação do ego, essa instância que, segundo a psicanálise, intermedia a luta entre o id, puro desejo pulsional com pressa desesperada de realizar, e o superego, instância, mais limitante; como também, onde são guardados alguns ideais.

Um ego que atua bem na função de intermediador, não irá nos deixar atormentados por não poder comemorar nossas tradições. O problema, acho, está na palavra tradições. Porque nos remete ao fundo de nós mesmos, às lembranças mais comezinhas e mais guardadas de nossa infância.

Durante algum tempo, escutava ao longe, na fazenda vizinha, o som que vinha do Grupo Escolar, improvisado como terreiro de forró, para perturbar nossos devaneios e aguçar a curiosidade. Lá, não era lugar para crianças. Também não era, independentemente da idade, lugar para os filhos do meu pai., um galego de olho azul, alvoroçado, e meio amedrontado com as violências que, vez ou outra, ocorriam, por desentendimentos de homens rudes, tocados por uma boa cachaça.

Não raro, ocorriam as situações, que Lua Gonzaga descreve no forró de Mané Vito. Cadeeiro apagado, peixeira alumiando na escuridão e algum ferido. Não que meu pai fosse frouxo. Tinha sangue no olho, que é quando o sujeito é meio agitado ou explosivo. Não sei se pelo número de filhos que tinha, fugia de festas. De encrencas. De qualquer balburdia.

Até que fui ao Grupo. Nem sei em que idade. Mas passei a noite assistindo à paquera de uma moradora com o zabumbeiro. Ela dançava no salão e, cada vez que circulava por onde ficava o pequeno palco, fazia sinal de positivo com a cabeça, no que era correspondida pelo galã.

Vejam de onde vem minhas lembranças. A memória passou como um trator sobre as cenas da juventude, os forrós em Santa Luzia; no meio da praça, das festas juninas no Patos Tênis Club e no Campestre Club; vez por outra um São Pedro em São Mamede ou Itaporanga. Tudo ficou esquecido, porque voei para onde se perderam as glórias da infância. Onde as perdas ficam perdidas no nevoeiro de cada história menina.

Tudo isso para dizer, que tradição popular de festa, é uma coisa que infesta nosso ser, de um modo tão lúdico e, ao mesmo tempo, tão ardente, que nunca nos desvencilhamos dela. E São João, vocês sabem: é para comemorar a colheita. Depois de plantar em janeiro/fevereiro, colher o milho para se fazer todas essas comidas que temos, e que, graças a Deus, continuam a salvo de qualquer gourmetização.

Por isso, fiquei triste. Mas feliz, com aquela canjica no café da manhã do dia seguinte, e a constatação de que, o povo nordestino, respeitou, em sua maioria, os limites de comemoração, para que sejam preservadas as vidas.

Meu artigo pode chegar atrasado na terça; mas, creiam, dentro de mim, ainda é São João. Tudo valeu. E como valeu! Pela live de Elba, de Flávio José, e tantos sanfoneiros e sanfoneiras lindas que tocam nas sanfonas, os tons e os sons da nossa alma, que, embevecida, fica a venerá-los, como ficou aquela criança, ao descobrir o sentido de uma relação afetiva a dois, justo no lado profano de uma festa de São João. que ficou perdida entre árvores e serras de um tempo bom.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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