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Médico. Psicoterapeuta. Doutor em Psiquiatria e Diretor do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba. Contato: [email protected]

Não tinha como esquecer

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publicado em 25/05/2021 às 07h17

A foto que Carlos Estevam, colunista Social de Patos, exibe, traz-me a cena que não quis mais sair. Porque essa, de tantas já vivenciadas, e por que essa foto, de tantas outras publicadas, relembrando os acontecimentos sociais da cidade? Não sei. Ela mostra o Dr. Orlando Damascena, que se foi há um ano, vítima dessa doença que grassa.
No final do Curso, no Internato, estagiávamos nas principais clínicas. Assim como ainda é hoje, com algumas modificações evidentemente. Além das clínicas, fazíamos o Estágio Rural Integrado-ERI. Até o presente, não sei porque Rural. Era, de fato, um estágio em cidades do Interior da Paraíba. Meu destino foi São José de Piranhas, lá nas divisas com o Ceará.
Fiquei num pequeno Hospital, administrado pela Prefeitura, Municipal. Havia atendimentos ambulatoriais e algumas pequenas intercorrências ocorridas na cidade. Porque, antes do SAMU, como todos que têm um pé no Interior sabem, as urgências eram muito mais problemáticas. As possibilidades de acudir alguém, em situações de risco de morte, eram por demais escassas.
Além do SAMU, as cidades-polo são mais bem equipadas e capazes de atender casos mais graves. Naquela época, quase tudo ia para Campina. Em Patos, havia um operador de tiro e facada, o Dr. Osman. Bom cirurgião. Porém, tinha que mandar muitos casos para Campina. Faltava equipamentos e infraestrutura. Havia uma crença na cidade, que ouvia com receio e medo: quando Dr. Osman manda para Campina, o sujeito morre. Não era maldição, era o modo que encontravam para enaltecer o profissional talentoso.
O ERI valeu por um único. Um único médico. Foi no pequeno Hospital onde, além de estagiar, fiquei hospedado. Havia almoçado e acabara de descansar um pouco. Mais ou menos 15h. Entra alguém gritando desesperadamente: um bisturi! Um bisturi! Um bisturi! Um pouco assustado, me aproximei para saber o que se passava.
Dr. Orlando estava com uma menina sobre uma maca, e abrindo a sua garganta. Uma menina de cerca de 10 anos, completamente cianótica, como nós médicos chamamos quando o doente fica azulado, sem oxigênio. Em poucos minutos, ouvi-o revelar: consegui! Havia feito a traqueostomia. Sem sala, sem anestesia.
Não acho que médico se forma para salvar vidas. Isso é mais glamourização que verdade. E até acho que distorce um pouco a cabeça desde o estudante, no sentido de “se achar”. Médico se forma para cuidar de pessoas. Para tratá-las e curá-las. Aliviá-las. Ali, porventura, era uma cena de salvação.
A criança brincava , engoliu, sem querer, algum pequeno objeto, que se alojou em sua glote. Não passava mais ar para seus pulmões. Era uma questão de minutos. De pouquíssimos minutos. Não sei como Dr. Orlando foi encontrado, e, ele mesmo, jogou a menina em seu carro e partiu desenfreado para o Hospital. Fez o papel de bombeiro, de SAMU, de médico. De salvador.
A despeito de ter vindo para Patos, alguns anos depois, onde foi Ginecologista por mais de duas décadas, nuca mais o vi, desde aquele longínquo ERI. Somente agora, quando a criança tem perto de 40 anos, e ele morreu há um ano, escrevendo o artigo, em associação livre de pensamentos, dou-me conta que a cena não me saiu da cabeça , porque Dr. Orlando morreu como morreria aquela menina.
No caso dela, não lhe chegava ar aos pulmões. No dele, embora o ar fosse até os pulmões, não era distribuído para o organismo, devido a coagulação intravascular do sangue, que não permitia nenhum transporte ágil de oxigênio, e tão urgente, como fizera ele com a criança em seus braços.
É. Não tinha como esquecer.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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