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Magistrado, colaborador do Diário de Pernambuco, leitor semiótico, vivendo num mundo de discos, livros e livre pensar. E-mail: [email protected]

O azedume do Velho Graça

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publicado em 14/01/2021 às 07h00
atualizado em 13/01/2021 às 16h19


Na literatura brasileira temos escritores que poderiam ter sido laureados com o prêmio máximo na categoria, o Nobel, dentre eles, o alagoano Graciliano Ramos (foto), dono de uma escrita requintada, limpa e enxuta. O Velho Graça, como era conhecido, foi um dos presos políticos mas ilustres da ditadura Vargas, período que resultou em seu famoso livro Memórias do Cárcere. Mas nem tudo são flores na sua biografia.

Outro escritor de boa cepa, igualmente nordestino mas nascido aqui na Paraíba, Ascendino Leite, nos conta um fato pouco conhecido da personalidade do Mestre alagoano. A partir do próximo parágrafo quem nos fala é o Mestre de Conceição:

“Graciliano Ramos era um caráter visceralmente mau. Parecia fruto duma espécie de hipnose, duma fatalidade orgânica, impulsiva e negra, a que não sabia resistir.

Quantos não foram atingidos por ela?

Estava nisso o exercício de sua natureza ‘gauche’, sempre levada para o lado da emulação literária. Contam-se entre seus alvos Érico Veríssimo, Gilberto Freyre, Zé Lins, Jorge Amado, o nosso José Américo, vez por outra alfinetados por seu humor corrosivo

Osvaldo Alves, que o estimava, escreveu o romance – Um homem dentro do mundo -, há séculos, isto é, nos idos de 41, creio, ou talvez antes.

Sucesso imediato; o autor estreava: um mineiro versando a ficção psicológica, empatando com o nordestino que escrevera Angústia, o clássico dessa linha que certamente o influenciara. Foi, aliás, o que assinalaram críticos atilados, que sabiam coisas do subterrâneo literário, e se rejubilavam com o êxito do autor – jovem, simpático, talentoso.

Osvaldo estava sempre com Graciliano.

Admirava-o mesmo, como muitos outros autores novos e veteranos no seu tempo. O mestre recebia-os, deixava-se adular, crescia de importância, supunha-se sempre acima desse vulgo.

Certa noite, visitando-o no apartamento, Osvaldo surpreendeu-se com o tom conselheiral do alagoano:

– É, estou lendo as críticas. Você deve continuar a escrever, fazer mesmo um romance…

Como de costume, já meio ‘tocado’, Graciliano trançou as pernas na cadeira, acendeu o cigarro ‘Yolanda’, a mercê de seu gosto, olhou implacável para o mineiro:

– Sim, porque o que você fez foi um conto. Agora você deve escrever um romance de verdade.

E depois:

– Concorda?

Osvaldo:

– Concordo não. Se tiver vontade, escreverei outros. Se não tiver, não escrevo nada, coisa alguma…

Chegou-se mais para perto de Graciliano, foi soltando:

– É isso. Agora, você, velho safado, fica aí bebendo; com raiva, com inveja, e mais não sei quê, querendo aporrinhar os outros! Não vai ser fácil, seu merda, seu filho da puta, seu…

E se mandou, deixando Graciliano engasgado com seu pigarro crônico de fumante, danado da vida, sem dizer palavra.

Por causa disso , o nosso Osvaldo nunca mais escreveu ficção. Ficou naquele livro, jogou para escanteio literatura e vida literária, dedicou-se de corpo inteiro à publicidade que, aliás, lhe deve textos de inexcedível inventiva intelectual.

De mim, direi que exagerou: Um Homem Dentro do Mundo é um dos melhores romances brasileiros modernos; esquecido está, de há muito, a merecer reedição.”

O texto acima foi extraído do livro Os Pecados Finais (jornal literário), – páginas 63/64 -, de Ascendino Leite, EdA Edit e Editora Idéia (1997).

Esse registro aguçou minha curiosidade literária, e decidi comprar num sebo o tão falado livro Um Homem Dentro do Mundo, do mineiro Osvaldo Alves.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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