João Pessoa, 13 de outubro de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
Médico. Psicoterapeuta. Doutor em Psiquiatria e Diretor do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba. Contato: [email protected]

Linda e famosa

Comentários: 0
publicado em 13/10/2020 às 06h06

A memória é essa função cognitiva que tem a capacidade de fixar, manter ou conservar e evocar, sob a forma de imagens mnêmicas guardadas ou de sensações. Assim, genericamente, ela está presente em todos os seres vivos. Se bem que há memórias diferentes em funções e em seres distintos. Tudo que faço, é porque guardei elementos que, misturados, me permitem realizar atos diários e profissionais. É uma mistura de memórias de longa duração, feita pela memória de trabalho, uma espécie de memória RAM..

Todos nós, a partir de um determinado tempo de vida, teremos falhas de memória. Aos 60 anos, nunca alguém terá memória igual a que tinha aos trinta. E aí, quando começamos a ter falhas, por naturais que sejam, nosso grande medo é que se trate de uma doença neurológica degenerativa. A representante maior da categoria é a Doença de Alzheimer. Mas, em geral, quando estamos cientes das nossas falhas de memória, não há degeneração. A gente sabe a palavra, o nome, que a coisa está ali, mas a danada da memória não consegue evocar.

Isso inclui o nome daquele ator ou atriz, onde deixamos as chaves do carro, e o próprio carro, onde ficou? Quantas vezes, procurei meu carro no estacionamento do HU. Será que estou ficando leso? Nesse caso, não analisava os fatos corretamente. Durantes vinte anos, paro o carro ali. Não tenho vaga marcada. Muitas vezes, na pressa de chegar, você ainda estacionando, está com o pensamento no consultório. No seu dever: estou atrasado! Ou seja, nem consciência de onde você parou tem, como lembrar depois? É como olhar o número do telefone da pizzaria. Minha lembrança permanece até quando ligo. Daqui cinco minutos, sei mais número nenhum! Era apenas a memória de trabalho em ação. Passada a tarefa, foi-se o telefone junto.

Nas doenças degenerativas, como Alzheimer, a pessoa não se dá conta que esqueceu. Portanto, não faz nenhum efeito, reclamar: – Mamãe você deixou o fogo aceso. – Você vestiu a roupa errada. Ela não tem a consciência desses esquecimentos. Claro que tudo depende do estágio. Às vezes, vejo a Vó da Pomba. Uma senhorinha de Barra de Santa Rosa-PB, que foi morar em Campinas-SP, na casa de um filho. O neto, A Pomba, era um desses digital influencer; e, descobriu, intuitivamente, o potencial que tinha a vozinha em arregimentar seguidores. O Alzheimer dela já é mais avançado. Ela diz alguma coisa. No mesmíssimo momento, fala: “- Mas é mentiroso. Eu nunca disse isso. Quem mente rouba e dá a roda”. Suas tiradas são as mesmas que levou da sua vida em Barra. Também altera a realidade. A piscina da casa, para ela, é a cisterna. Que nordestino mais idoso, não guarda uma cisterna em sua memória? Ninguém pode entrar, senão a chinelada come. Às vezes, acho pesadas as brincadeiras com ela. Mas, ao mesmo tempo, percebe-se o amor deles pela vozinha, e ao forçá-la a pensar, ao interagirem constantemente com ela, de alguma forma estimulam sua cognição. Dona Amália, que foi casada com Severino, é a famosa vó da pomba. Linda e famosa, apesar de uma doença degenerativa que continua andando em seu viver.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

Leia Também