João Pessoa, 26 de junho de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Acordei hoje pensando no título de um livro lançado no final dos anos 1970, Nossos índios, nossos mortos, de Edilson Martins. Quem o publicou foi a Editora Codecri, pertencente ao histórico semanário O Pasquim. Li-o assim que saiu, em meados de 1978. Era estudante de Jornalismo e estava impactado pelo romance Quarup, de Antônio Callado, focado na mesma realidade e nas contradições e perplexidades dos católicos progressistas, empenhados em exercer, na prática, a opção preferencial pelos pobres em plena ditadura militar.
O livro é antigo, mas fala de coisas muito atuais. Descreve acontecimentos do passado e que continuam sendo noticiadas nos jornais de hoje. Como o contexto que pariu o romance de Callado e o livro-reportagem de Martins se manteve ativo até hoje? Que sociedade é esta que persiste tão obstinadamente na injustiça?
A primeira coisa que notei quando cheguei em Angola, em 2002, foi que lá, de um jeito ou de outro, os “índios” sobreviveram. São africanos-nativos os funcionários que nos atendem na imigração, os apresentadores do telejornal do horário nobre, o par romântico da novela e até autoridades como ministros, juízes e arcebispos. Angola não é nenhum modelo de justiça e de equilíbrio social. Menos ainda é o Brasil. Prova é que por aqui só se vê um ou outro negro naquelas funções. Já índio, nem como exceção para confirmar a regra.
Entendo o título “Nossos índios, nossos mortos” como um sucinto poema de uma só estrofe (e dois versos de três silabas), que não soa melancólico por traduzir um chamado à consciência. Fala sobre o destino dos índios no Brasil e sobre o papel de cada um de nós como cidadãos neste país. Diz que a) índios foram mortos, estão sendo assassinados neste instante, e não podemos ignorar esta realidade; e que b) estas mortes e estes mortos não são órfãos, têm donos e estes somos nós.
É fato, tenho pensado muito em nossos índios já mortos e naqueles que ainda conseguem subsistir, apesar de tudo. Mas acho que os mortos que despertaram aquela lembrança estão mais próximos que os índios de Edilson, Orlando Villas Boas e Darcy Ribeiro. Nestes tempos de coronavírus, a morte nos sitia tão de perto que sentimos seu bafo gelado e fétido. Ela ajusta com frieza a mira e quase nunca erra. Vai limando a nossa força e nos tirando o que temos de melhor, que são as pessoas que nos moldaram, às vezes simplesmente por existirem perto de nós.
Falar de corona é falar de genocídio – igual a quando falamos do martírio dos escravos e da eliminação das populações indígenas. Há genocidas que usam metralhadoras e canhões, genocidas munidos de motosserras e boiadas e aqueles que dizimam povos negando assistência e / ou desinformando propositadamente. Fakenews são armas tão letais quanto granadas. Enfrentar uma pandemia da dimensão da covid-19 é um tremendo desafio quando há união de esforços e unidade de propósitos. Torna-se quase uma impossibilidade quando entre os que deveriam coordenar os trabalhos para salvar vidas há um presidente da república remando na direção contrária, como se conspirasse para nada dar certo. É o que estamos vivendo no Brasil.
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OPINIÃO - 06/11/2024