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Hildeberto Barbosa Filho
Gosto destes versos do poeta Alberto da Cunha Melo, pernambucano de Jaboatão dos Guararapes:
Viver, simplesmente viver,
meu cão faz isso muito bem.
Extraio deles uma curiosa e, decerto existencialista, tipologia da criatura humana. Para mim, há o homem fático e há o homem transcendente.
O homem fático se estreita no determinismo da facticidade, nos limites fisiológicos do viver. No fosso sufocante da química e da biologia. O homem fático come, dorme, respira, trabalha, faz sexo, sua. Será, no entanto, sempre o mesmo, animal como a zebra, o hipopótamo, a raposa e o gato. Seu universo é fechado. Programado. Fatal. Pelo menos é assim que pensa a ciência.
O homem transcendente, por sua vez, se espalha na tentativa de apalpar a alquimia de existir. De não naufragar na recusa de ser, ultrapassando, assim, os vocativos da necessidade, para se jogar na beleza da liberdade, sem medo do acaso e do imponderável. O homem transcendente também come, também dorme, também trabalha, também respira, também sua, mas, já não faz sexo, e se o faz, o faz deixando-se irrigar pelas águas mágicas do erotismo. O homem transcendeste é ele mesmo e é, ainda, o outro, ambos animais sagrados, diferente, portanto, do cão, do gato, do boi e da zebra. Seu mundo é aberto, e, nele, experimenta o difícil licor das escolhas. Pelo menos é assim que nos ensina a filosofia.
Loucos, crianças, místicos, santos, revolucionários, bêbados, amantes, artistas, poetas, todos abraçam os vapores do possível, os ardores da criação, a insatisfação contra o status quo, o desejo de reinventar o mundo e reinventar a vida, melhorar, enfim, o metabolismo da espécie humana na edificação de convívio social.
Vejo Flávio Eduardo Maroja Ribeiro, nosso querido Fuba, nessa frei de iluminados. Ser simples, plural e poliédrico, aureolado, transitivo, sempre atento ao fluxo das coisas que movimentam as veias e as artérias da cidade. Sobremaneira, as coisas culturais. Fuba é político, é pesquisador, é carnavalesco, é musical, é pedagógico, é poético. Fuba transita pelos espaços da convivência fraterna, dialogando com a alegria e a generosidade em qualquer ambiente que frequenta.
Tem interesse pela história dos anos 30, de que resultou a obra Parahyba 1930: a verdade omitida, de 2021; vale-se do idioma midiático para elastecer o corpo da meditação crítica e informativa; brinca o carnaval, sobretudo, na sua irradiação humana e transgressora; compõe, canta, interpreta canções leves e fecundas, incorporando o lírico DNA das terras tabajaras.
Bom filho, bom pai, bom amigo. Espécie rara de gente aglutinadora, bafejado por talentos diversos e cruzados, portanto, pertencente a uma família de criadores paraibanos do melhor quilate. Observando a presença e a intervenção culturais, mediadas principalmente pelo encontro e tensão entre estética e política, Fuba me parece um parente próximo de Bráulio Tavares, de Walter Galvão, de Carlos Aranha, de Pedro Osmar, de W. J. Solha, de Jomard Muniz de Britto. Todos, adeptos apaixonados do debate crítico, da militância via palavra.
O seu livro Hipotálamo (João Pessoa: Editora A União, 2023), ora lançado, traz o testemunho do poeta da palavra impressa, com seus poemas verbais e todas as propriedades de sua retórica expressiva, modelada pela tradição do verso metrificado, dos jogos rimáticos e, em especial, pelo privilégio acentuado da camada acústica dos textos.
Talvez isto se deva à presença incontornável do letrista e compositor, intrometendo-se, com sua voz e ritmo, na medula silenciosa do poema. Por isso mesmo, seus poemas, nas diversas seções em que a coletânea se subdivide (“Reflexões do hipotálamo”, “Versos do hipocampo”, “Encefaloversos”, “Universo em nove foras” e “Inverso universo”), e os assuntos, motivos e temáticas, como que pedem a prática gestual da leitura em voz alta, dentro dos critérios melódicos da oralidade. Tome-se um poema qualquer, por exemplo, “Zé Limeirando o mundo”, em sua primeira estrofe, de 12 versos em redondilha maior, e ateste-se a veracidade do que estou dizendo:
Uma porta sem fechadura
caiu de uma caçamba escura
quase que fez um estrago
num carro que tava parado∕
ao lado do bar Singapura
daí começou a loucura
quiseram fazer confusão
a porta não fez um arranhão
mas mesmo assim um machista
armado de ódio fascista
matou o infeliz motorista
e o dono do caminhão.
Fuba faz uma poética da expressão, do dizer, mais que uma poética da construção ou do fazer. Preside seus versos o calor das funções emotiva, conativa e referencial da linguagem, enquanto repositórios de sua aguda e irrequieta sensibilidade, de seus anseios, de suas perspectivas, crenças, sonhos, indignação, verdade e critica.
Suas motivações são polivalentes, e o repertório temático se estende em muitas direções do lirismo. O amoroso, o sensual, o filosófico, o confessional, o lúdico, o participante e social, o telúrico, o descritivo, o memorialista etc. Seu estro poético segue a metodologia do bom combate, da luta pelas mudanças transformadoras, pela utopia social encarnada na configuração de um mundo melhor.
Passando ao largo das pirotecnias formais e do hermetismo esnobe e tantas vezes vazio da dicção moderna e pós-moderna, dos aparatos vanguardistas, Fuba verbaliza, neste Hipotálamo, seus sentimentos e suas reações diante do apelo das coisas, dos fatos e dos seres. Ecoa, no andamento de seus versos, vozes alheias e de múltiplas valências, enriquecendo as malhas intertextuais de sua dicção lírica, mescladas no tecido deste hipotálamo, enquanto zona nervosa do desejo, e do hipocampo, enquanto energia acesa da memória.
A lição da cultura popular, entrevista por Valesca Asfora, em nota de orelha; a profusão de recursos linguísticos já demarcadas pelo professor Aléssio Toni, também poeta, no texto do prefácio; algo do underground, do pop, do erudito; Drummond, por um lado; Bob Dylan, por outro. Zé Ramalho, Chico César, Zé Limeira, Rita Lee, Bráulio Tavares, Lenine, Lúcio Lins, Pedro Osmar, Alex Madureira, entre outros e outras, comparecem à plataforma de seu discurso poético, em certo sentido sinalizando para a rica e exuberante encruzilhada de suas fontes artísticas e musicais. É ler e conferir!
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ENTREVISTA À REDE MAIS - 10/11/2025