João Pessoa, 21 de agosto de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Elizabeth Marinheiro não transige com as palavras na exploração de seus interesses críticos e teóricos. Afeita aos percursos acadêmicos, quer nos impasses da sala de aula, quer nos desafios das pesquisas, nunca se distanciou, contudo, de outros chamados da vida cultural. Sempre militou nas páginas dos jornais, desenvolvendo os caminhos exegéticos de suas “tessituras”, numa práxis analítica a que não faltam o rigor das disciplinas teóricas, o senso de observação da “coisa” literária, a atenção do olhar que não desconhece gigantes nem pigmeus nas zonas indecisas e oblíquas da composição textual.
Lendo e sublinhando certas passagens de sua escrita fragmentária, materializadas no recente livro Motivações (Campina Grande: RG Editora, 2023), vejo-me na obrigação de assinalar, uma vez mais, o papel indispensável de sua intervenção hermenêutica nas diversas possibilidades que a expressão literária, daqui e de outras latitudes, revelam em forma e fundo no tecido aberto do discurso verbal.
Fruto de sua colaboração, que já vem de longe, nos periódicos locais, agora, sobretudo, em A União, o volume conjuga três seções: “Tessituras reescritas”, “Depoimentos que dispensam legitimações” e ‘Ao longo das teorias”. Na primeira e terceira, fala Elizabeth. Na segunda vêm à tona as vozes de outrem acerca de sua trajetória de professora, ensaista e militante cultural.
Em nota de explicação, a autora estabelece, a seu jeito lúdico e competente, os meandros de sua ocasional metodologia, focada sobremaneira na “instabilidade” dos dispositivos teóricos e na inquestionabilidade ou na “ruína” dos “processos legitimadores”. “Se as correntes hermenêuticas ainda desejam potencializar a significação e o silêncio literário”, afirma ela a certa altura, “os estudos de menor porte pedem passagem”.
Diria mesmo que estes estudos, pequenos retratos três por quatro de autores, situações, afetos, memórias, versos, citações, entre outros registros prefigurados, constituem o elemento central e nervoso de suas achegas analíticas, atentas a nuances, detalhes, filigranas, essencialidades projetadas nos corpos textuais. Seu paradigma reside nas margens “entrelaçado ao trivial, ao humor, ao banal”, ou mesmo a uma literatura que “dispensa centros e pontos fixos”.
Aqui está Elizabeth Marinheiro de corpo inteiro, jungindo, no calor da palavra heurística, o sabor e o saber barthesianos à rigorosa metalinguagem que advém de um Erich Auerbach, de um Eduardo Portella e de um Antoio Candido, sem se deixar, todavia, seduzir pelo império da teoria. Daquela teoria que, na mais das vezes, se ostenta, arbitrária e arrogante, para fazer calar a voz dos textos.
Não. Aqui, os instrumentais teóricos são meios e não fins. Funcionam como gps na localização dos sentidos e dos recursos retóricos que o texto literário encena, colocando-se à disposição da aventura investigativa em que o leitor mergulha. Daí porque, mais que a crítica sistemática, fundada no rigor da análise, na perspectiva da interpretação e no risco do julgamento, tenho, aqui, nessas “motivações”, uma dialógica admirativa, um impressionismo requintado, uma provocação de afetos que não distinguem o cânone das expressões periféricas.
Elizabeth não elege discursos a priori, não determina hierarquias, não se engessa na malha dos preconceitos teóricos, não faz proselitismo. Apenas quer ler… Ler o fragmento, o ponto de fuga, as mônadas sutis que fazem da palavra a senha da melhor estética.
Referindo Davi Arrigucci Jr., mestre da crítica criativa, diz criativamente: “Com sua leveza, ele recusa deslindamentos intertextuais e promove a antifórmula que concilia as sensações do Conhecimento e o poder do Prazer barthesiano. Nada de labirinto”. Sobre as academias, afirma que não “devem ter feição museológica. Recusa ´literatos` que atendem ao consumo. Recorre a aprendizagem diária e objetiva análise e∕ou construção de perspectiva”. Recorrendo a Emil Staiger, assegura que os “estudos modernos já não admitem as delimitações dos gêneros, porém o recordar é definitivo”. De Clarice Lispector, sabe que a obra acontece de “dentro pra fora” e não “de fora pra dentro”. E suas leituras “evitarão sempre conclusões”, demarcadas que estão pelo sagrado viés da obra aberta.
Manuel Bandeira, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Lindolfo Bell, Ariano Suassuna, Nélida Pinõn e tantos outros e outras passam pelo seu crivo ousado e instigante, a refazer caminhos críticos que nos elastecem o olhar sobre autores e obras que já lemos. Eis, aqui, no movimento de suas “motivações”, Elizabeth Marinheiro, do alto de sua vasta experiência, reinventada na sua vida de leitora e ensinando aos leitores que somos novas entradas para os infinitos do mundo literário. Uma Elizabeth que, sem forçar o poder dos métodos e decerto desaprendendo muito de seus vocativos determinantes, prefere apostar no prazer do texto e apenas ler.
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