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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

 Solidariedade

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publicado em 29/04/2024 às 19h41

A palavra solidariedade tem origem no francês (solidarité) que também pode remeter para uma responsabilidade recíproca. No mundo pós-moderno o que muda no sentimento do homem, hoje? Há várias mudanças. Até porque desde ao nascer o homem se insere em uma sociedade que é única. É o contexto econômico, ambiental, cultural e social, que faz a diferença. Onde o homem nasce ele determina sua maneira de viver e conviver. Faz sua história e também é feito por ela. Isto é um fato. A população do mundo cresceu e com ela cresceram todas as demandas implícitas que implicam em satisfações pessoais, educacionais, emocionais, econômicas e sociais, de acordo com a civilização a que pertence.

Nesse mundo onde cabe a solidariedade? Que sentimento é este? Termo que se atribui a atos de bondade, compaixão e empatia em relação ao outro. Gestos que demonstram o reconhecimento e a valorização das ações altruístas que contribuem, ajudam e apoiam as pessoas visando o bem-estar do próximo. Há o desejo e o sentimento que a solidariedade seja a ferramenta que possa ajudar a construir uma sociedade mais justa e igualitária e que ofereça melhoria das condições de vida aos cidadãos em situação de vulnerabilidade e assim estabelecer o bem-estar coletivo. Este sentimento constatamos nas pessoas que trabalham voluntariamente ajudando aos mais humildes, pobres e moradores de rua. Existem muitas formas para se praticar a solidariedade nas mais variadas áreas. É possível se engajar em projetos sociais, seja como voluntário em instituições de caridade, seja participando de campanhas e projetos.

As Nações Unidas instituíram o dia 20 de dezembro como Dia Internacional da Solidariedade Humana. Esta data foi estabelecida em 2005 através da resolução da Assembleia Geral de nº 60/209, onde descreve a solidariedade como um dos valores fundamentais e universais do século XXI. Com essa criação a ONU busca promovê-la ao alcance dos ODSs. (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), funcionando como guia para políticas públicas incluindo a erradicação da pobreza. Entende a ONU que: “a solidariedade global é fundamental para atingir todos os objetivos, posição exposta na Declaração do Milênio como um dos valores fundamentais das relações internacionais no século XXI, em que aqueles que sofrem ou se beneficiam menos merecem ajuda daqueles que se beneficiam mais”.

Émile Durkheim, sociólogo francês, abordou o sentimento da solidariedade em sua obra intitulada “Da Divisão do Trabalho Social”, publicada em 1983. Afirma: ”a solidariedade é uma relação moral que permite aos indivíduos se sentirem pertencentes a uma sociedade. Entende que existem três tipos: a comunitária, a mecânica e a orgânica. A comunitária se manifesta através do sentimento social que agrega interesses comuns de um grande grupo de indivíduos que lutam juntos pelo mesmo objetivo. A mecânica se apresenta por meio de vinculo social como religião, família, resultantes dos costumes e tradições etc. A solidariedade orgânica tem como propósito aprimorar o vínculo social que acontece na divisão do trabalho quando há a interdependência e o reconhecimento tácito que todos são importantes para gerar o fruto objetivo final da união de todos”.

Participo há cinco anos de aulas de hidroginástica para adultos e grupo de terceira idade numa grande academia, cujas aulas ocorrem duas vezes por semana. A professora Talita como verdadeira agregadora tem um domínio e liderança sobre a turma e habilidade de reunir os alunos. Promove passeios, realiza comemorações nas datas festivas, eventos e campanhas de solidariedade. Para cada evento é criado um ambiente e a academia recebe uma decoração a caráter de acordo com a temática da festa ou da época. Todo esse cenário proporciona aos alunos um ambiente alegre e de união, permitindo a integração dos discentes e a criação de laços de amizade entre eles. Tanto é assim que as aulas se convertem em lócus de desabafos em ambiente de familiaridade e confiança, parecendo fazer parte de uma grande família. Com o passar do tempo o conhecimento vai se aprofundando e todos nós colegas somos sabedoras de peculiaridades da privacidade de cada colega. O sofrimento e histórias passadas fazem parte de suas vidas.

Nesse grupo temos pessoas que vão de 46 a 93 anos e quando estamos juntos viramos crianças, gritamos, pulamos e manifestamos toda nossa alegria ali extravasada, criando um clima de camaradagem, prazeroso. Às vezes ocorre o contrário. Quando estamos passando por algum momento difícil esse sofrimento também é compartilhado e imediatamente os amigos levantam nosso astral incentivando, usando frases de efeito, pensamentos positivos, dando exemplos de sucesso de colegas que passaram pelos mesmos problemas e hoje se encontram bem. De modo que o momento da aula constitui motivo de satisfação e interesse de frequentar aquele ambiente tão acolhedor.  Observo no grupo sentimentos aguçados e presentes, na vontade de comunicar, falar, contar fatos antigos e atuais que estão vivendo. Pensando bem, constato que esses idosos na maioria se encontram sós, acompanhados                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    da solidão, fruto da longevidade que cobre sua vida e aquela aula funciona como uma válvula de escape, onde se sentem livres e libertos das amarras da censura e de protocolos.

Entre os colegas temos um casal muito querido, Sheila, de 79 anos e Frederico, que apelidamos carinhosamente de Fred, com 83. Vivem uma união de 53 anos consolidada por um amor só visto em conto de fadas. Da união   nasceram três filhos, duas meninas e um menino. Chamou a nossa atenção que eles apesar de bem casados nunca vinham juntos: uma vez era ele, outra vez era ela. Em conversa ficamos sabedoras que eles tiveram o filho homem com uma doença rara que o tornava incapaz; não saia da cama diante de limitações físicas e mentais.  Ao nascer o médico neonatal falou que ele teria poucos dias de vida.  Notícia que os deixou desolados. Fazer o que? Sheila e Fred conversaram muito, tiveram dias sem dormir, maquinando como iam enfrentar aquela situação que também iria afetar suas vidas. Uniram-se para traçar plano como iriam viver de agora por diante, e eles afirmam que só o amor existente entre os dois    foi capaz de sustentar e superar aquela situação tão difícil que se apresentava. Sem contar, também, com a assistência que deveriam dispensar às outras duas filhas.

A criança Artur, que iria durar alguns dias, fez 45 anos no dia 11 deste mês. Aí nós compreendemos porque os dois nunca estavam juntos. Porque quando uma saia de casa o outro ficava para dar a assistência que Artur necessitava. Sheila conversando disse-nos que não tinha cuidadora para ele. Tudo faziam para superar as restrições de Artur e, apesar das dificuldades serem muitas, havia sempre uma brecha para vencê-las. Diz: “Coisas de Deus. Os cuidados que dispensávamos a ele incessantemente o fazíamos com muito prazer. Ele falava com sons que davam a entender. O que desejava logo era satisfeito. Nunca nos lastimamos por ter Artur com essas deficiências de locomoção e de audição.  Vejo que serviu como ponto de união do amor que existia em nós. Cuidar dele nos causava satisfação e ele também sentia isto “.

Na semana passada sentimos a falta de Fred. Procuramos saber e tivemos o comunicado que seu filho estava muito doente. À noite fomos sabedoras do falecimento de Artur. As colegas começaram a dar a notícia do óbito de Artur e que o seu enterro seria no outro dia em um dos cemitérios da cidade. Toda a turma combinou de não ir à aula de hidroginástica e sim ao velório de Artur. Falaram para Talita ir também.  E assim foi procedido. Os quarentas alunos compareceram ao velório para abraçar Sheila e Fred, que ficaram possuídos de uma emoção incontida pelo gesto de solidariedade e demonstração de tanto carinho recebidos dos colegas.

Na terça feira, ainda não fazia sete dias da morte de Artur, Sheila e Fred apareceram na aula de hidroginástica, não para participar, mas para abraçar os colegas, um a um, numa emoção que as palavras eram insuficientes para descrever, deixando todas nós em silêncio. Neste instante, o silêncio falava mais alto, disse tudo, sem que fosse dito nada. Todos nós não tivemos o que falar. O casal veio agradecer a turma naquele momento tão doloroso, onde suas presenças foram confortantes e inesquecíveis. O casal até hoje não voltou às aulas.

A solidariedade não é só materializada com doações ou dinheiro, mas, também, com demonstração de carinho e amor e sentimento de amizade como este realizado pela turma da hidroginástica. O gesto solidário serve como bálsamo que ajuda a cicatrizar a ferida dolorosa que impacta a vida. É com atos como este que assumimos o valor intrínseco da dimensão verdadeiramente humana. É como assumíssemos a dor do outro. Parabéns! À Talita, professora, e à turma da hidroginástica pelo exemplo.

Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP

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