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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

O ocaso da vida

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publicado em 16/04/2024 às 11h16

Tudo tem seu tempo, com o homem não é diferente. Tempo de nascer, tempo de viver e tempo de morrer. Cada um tem peculiaridades que lhe são próprias e características únicas. A velhice é o fenômeno da vida que mais nos chama a atenção por nos parecer o mais frágil, mais dependente e que não permite uma evolução porque a sensação que temos é ao contrário. O avançar da idade, as mudanças, ocorrem de ordem física, psicológica, neurológica, fisiológica e social que provocam alterações no relacionamento do idoso com as pessoas, consigo mesmo e com o ambiente em que vive. Há um processo involutivo que não é estagnado e sim progressivo, as medidas e providências tomadas pela ciência e tecnologia, apesar dos avanços, apenas vão substituindo ou melhorando funções que são próprias do organismo para que se estabeleça o equilíbrio corporal. São os dentes que caem e são repostos; a pele que enruga e decai, tem os cosméticos e as plásticas; a vista que não consegue mais enxergar de longe ou de perto que o oftalmologista ajusta com os óculos ou lentes de contato; no ouvido que não consegue mais ouvir determinados sons o otorrino coloca o aparelho ajustável a cada caso e aí vai debreando. O estado de velhice mesmo com todo esse progresso não consegue de todo parar com este retroceder. Tudo acontece paulatinamente em seu caminhar até a finitude.

O fenômeno do envelhecimento constitui um dos mais relevantes e significativos do mundo contemporâneo. Segundo o estudioso do tema, Alves José Eustáquio (2023), “dominará o cenário demográfico do século XXI “. Há um crescimento acelerado no mundo e em especial no Brasil causando impacto econômico sobre o sistema de proteção social e de saúde, com implicações em todos os setores da sociedade; – no mercado laboral e financeiro; na procura de bens e serviços, como a habitação; nos transportes e na proteção social; nas estruturas familiares e laços intergeracionais. Globalmente, o número de pessoas com 80 anos ou mais deverá triplicar até 2050, passando de 137 milhões, em 2017, para 425 milhões conforme dados do censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2050, estima-se que a população de velhos representará ¼ da população mundial, alcançando 2 bilhões de habitantes conforme estimativa do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. A idade média, que era de 29 anos, em 2010, passou para 35 em 2022. 5,5 milhões de idosos moram sozinhos no Brasil e boa parte deles não têm condições de contratar um serviço de cuidados. O IPEA recomenda atividade física; mobilidade para desempenhar as atividades cotidianas: tomar um transporte público, carregar pacotes de compras com 5 kg ou mais, usar telefone de forma, mexer com dinheiro, ir ao banco, gerir as próprias contas, cuidar dos afazeres domésticos, entre outras coisas, de forma independente.

Esta semana eu vivi essa realidade que os indicadores estatísticos supracitados estão a refletir. A história de que fui sabedora enquadra-se perfeitamente no cenário descortinado. Tenho amizade com Malu, fisioterapeuta muito dedicada e comprometida com o trabalho dispensado a seus clientes, na maioria idosos, deficientes neurológicos entre outros…. Possui vários cursos de pós-graduação, portanto encontra-se apta para resolver os problemas que tenham a indicação de seus cuidados. Já testemunhei várias recuperações, resultado de sua assistência.

Malu, através da sobrinha Suely, que é técnica em contabilidade e trabalha num sindicato, conheceu Filomena idosa de 76 anos que é sindicalizada. Suely, vendo Filomena apresentar-se debilitada, andar trôpego, fragilizada e torta, musculatura enrijecida, com dificuldades de deambular, aproximou-se e ofereceu-se para ajudá-la no que de logo foi aceita. Comunicou que percebeu suas limitações e que tinha uma tia fisioterapeuta, especialista em patologias do idoso e podia oferecer assistência, que iria melhorar a qualidade de sua vida. Filomena declarou que realmente estava precisando de uma fisioterapeuta porque a que tinha pelo plano não estava satisfeita. Além de ser pouco o procedimento era rápido, uns 15 minutos, quando o médico prescreveu meia hora, e constatava não haver melhora. Malu visitou Filomena, fez uma avaliação e hoje além de dá-lhe assistência, já se percebe resultados positivos principalmente com relação à sua mobilidade. A escoliose e a lordose são problemas degenerativos. A fisioterapia não a vai deixar completamente curada mas pode proporcionar-lhe uma qualidade de vida permitindo em parte libertar-se da subordinação em relação aos outros.

Filomena tem uma história de sofrimento. Nasceu gêmea com um irmão, no interior de São Paulo. Sua mãe na última gravidez teve eclampsia, ficou doente mental, e o pai, agricultor, trabalhava lavrando a terra plantando. Levava uma vida corrida com os quatro filhos, precisando de ajuda dos familiares e nem sempre contava com o apoio deles, pois todos tinham suas ocupações. Com isso era obrigado a deixar as crianças à própria sorte. O viver naquela situação foi ficando cada dia mais difícil e as dificuldades de criar os filhos foi se tornando impossível.

Havia um delegado que visitava o sítio que conhecia Jorge e sempre pedia: “homem me dê essa galeguinha para eu criar? ” Ele relutava. Uma vez insistiu e Jorge enfrentando a problemática e a miséria que vivia, achou que melhor para Júlia era estar com uma família que ia lhe dar o que ele não podia oferecer. O Dr. Expedito falou: eu vou criar sua filha, vou mudar o seu nome para Filomena em homenagem a Santa Filomena, de quem minha esposa é devota. Neste momento, Júlia passou a chamar-se Filomena, tinha quatro anos. Expedito era pernambucano, mudou-se para o interior de Pernambuco e morou em várias cidades, pois o seu cargo o obrigava a transferir-se de cidade. Filomena não foi muito feliz na família, porque diz que o irmão, filho do casal, não gostava dela. Estudou, fez vestibular para Direito, cursou até o quarto período, mas desistiu. Concluiu curso Técnico de Contabilidade com o qual submeteu-se a concurso do FISCO, órgão fiscalizador e controlador das finanças do Estado e foi morar em Campina Grande. Casou-se, com três meses engravidou, e, após seis meses de gestação, perdeu o filho. Separou e ficou tomando conta da mãe e do pai. Há cinco anos morreu o pai e há 3 foi a mãe. Aposentada, permaneceu em Campina, mas depois veio morar na capital. Aqui em Joao Pessoa, muito católica frequentando a igreja tornou-se amiga de um padre e de outras mulheres que também eram adeptas dos cultos religiosos. O padre transferiu-se para o interior do Estado e incentivou-a a morar também lá na cidade em que iria ser pároco. Morou dois anos, mas não deu certo. Ela fala que estava sendo muito explorada pelo padre e por outras pessoas, pois é acometida de patologias como: artrite, artrose, escoliose, cifose, não cozinha, não pode pegar em peso, tem dificuldade de locomoção, não tem força para levantar-se, o que a incapacita para que tenha uma vida independente, e impõe proteção aos indivíduos que encontram nessa oportunidade tirar proveito das fragilidades do momento. Mesmo com essa situação adversa permaneceu lá dois anos, quando resolveu retornar à capital. Mora em um bairro de classe média numa casa simples até os dias atuais. Tem intenção de comprar um apartamento à beira mar. Sua situação financeira é boa e lhe concede pagar por serviços que lhes são prestados. Hoje, conta com o apoio da vizinha que fornece as suas refeições, porém diz que se intromete em sua vida, dando regras e policiando as pessoas que a visitam. Isto a deixa bastante constrangida. São amizades que fez através da igreja, daqui e do interior e que as têm como família. Vive só, não tem ninguém com ela. O irmão adotivo perdeu o contato há quatro anos, sabe que tem filhos e mora no Rio, mas não tem notícias. Os de sangue foram adotados e não tem conhecimento onde estão, o sobrenome de família desconhece, pois deixou-os com quatro anos e não se recorda de nada. Sabe que sua descendência é italiana porque escutava o pai adotivo falar. Segundo Malu, Filomena tem temperamento difícil de convivência, atribui ela que foi devido a experiências anteriores por aqueles que ao aproximar-se dela eram para explorá-la e extorqui-la. Alguma coisa que faziam era pela troca de seu dinheiro sem que demonstrassem algum sentimento de carinho e afeição e isto a deixou embrutecida e infeliz. E assim Filomena leva a vida até o dia que Deus permitir.

Referindo-se a essa problemática, a antropóloga Mirian Goldenberg afirma que: “esse envelhecimento da população requer cuidados e mudanças no perfil da administração pública. Nós estamos vivendo mais, mas a qualidade de vida dos mais velhos é terrível. Não existem políticas públicas, as próprias famílias não estão preparadas, não existem formas de cuidar desses velhos. Então, eu acho que o Brasil ainda pensa que é um país de jovens, e não é. Nós temos que começar a nos preparar já. Aliás, já estamos muito atrasados”,

Está aqui a história de Filomena, comovente e triste, sem perspectivas de mudanças, melhoras e de felicidade. Como diante desse percurso em sua linha do tempo agora pode ser diferente? Situação inusitada que o destino a levou e que não há uma solução para que a trajetória seja outra e dar sentido a sua vida, objetivando uma perspectiva diferente. Diante do quadro exposto questiona-se quantas Filomenas existem no mundo e no Brasil? Há de se implantar uma política pública assistencial para minorar a situação dessa população sozinha envelhecida, porque a existente mostra-se insuficiente. O SUS haverá de expandir sua atenção. Profissionais deverão ser estimulados a especializar-se em geriatria. Diante da realidade que está tão perto de nós, o que fazer? Para quem apelar? O quadro é desafiante e desolador. O dever humanitário como fica? Ignorar que ele inexiste?

Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP

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