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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

As toalhas trocadas

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publicado em 19/03/2024 às 09h58
atualizado em 19/03/2024 às 11h12

Usa-se o termo ignorância para atribuir a condição da pessoa que desconhece a existência ou funcionalidade de algo, de um assunto ou determinada coisa, de acontecimentos contemporâneos e que a torna incapaz de praticar procedimentos que requeiram conhecimento prévio do que se vai executar. Isto acontece com indivíduos analfabetos que por diversas razões não dominam o conhecimento e neste aspecto permanecem cegos sem atingirem o mundo de ler e escrever. Situação de pessoa desprovida de cultura, que não estudou e apresenta ignorância total. Geralmente essa pessoa expressa-se de maneira grosseira, incivil, fugindo dos padrões do que a civilidade, em seu processo de inter-relações sociais, adota. Há uma ausência de consciência. Observa-se, que o homem é um ser aprendente. Não nasce pronto. Há que passar por processos pedagógicos metodológicos que desenvolvam a aprendizagem do conhecimento, habilidades e atitudes e possa estar apto a adentrar ao mundo social. Necessariamente implica em um processo educacional.

A educação é a única ferramenta capaz de modificar a visão do homem sobre as coisas, os fenômenos e o contexto onde vive e convive. A problemática sobre o analfabetismo no Brasil é muito antiga e durante minha vida estudando o processo educacional assisti várias tentativas de programas e projetos públicos com intenção de erradicá-lo. Educadores e cientistas sociais, baseados em teorias epistemológicas tentam explicá-lo buscando as causas e indicando caminhos aos administradores educacionais para que adotassem as providências no sentido de bani-lo. O que se vê? A problemática persiste. Dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Censo Demográfico de 2022 apontam que das 9,6 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não sabem ler e escrever, 59,4% (5,3 milhões) vivem no Nordeste e 54,1% (5,2 milhões) tem 60 anos ou mais. Segundo Sonia Maria Portella Kruppa (foto), professora da Faculdade de Educação da USP, “é impossível refletir sobre esses dados sem considerar as desigualdades estruturais do Brasil. ” Verifica-se que há inúmeras causas condicionantes e determinantes de ordem estrutural e conjuntural. Acrescentem-se que na análise dos dados observa-se que muitos jovens concluem o ensino fundamental não possuem habilidades básicas de leitura e escrita. Uma vez, quando estava como professora de didática dos alunos do Curso de licenciatura em Física e Matemática, os docentes falavam que o problema não estava na matemática ou física nas resoluções dos problemas para eles apresentados, e sim, preliminarmente é que não sabiam compreender e interpretar os enunciados das questões. E hoje, discutindo com alguns colegas professores que estão na ativa, falam que com relação a alunos advindos do ensino público, a situação ainda perdura. O contexto em que se encontra a educação, apesar dos esforços políticos em procurar resolver a polémica do quadro caótico do analfabetismo, continua o mesmo. Atinge questões da sociedade como um todo. Não é só o setor educacional que deve tomar a bandeira para resolvê-lo, envolve situações sociais e políticas na resolução do problema e nesse momento, não temos o propósito de discuti-lo.

Conheço um casal de idosos, Adriana e José, que me contaram uma história muito interessante e que retrata a situação da problemática do analfabetismo. No início da pandemia do covid a empregada mais antiga tinha ido morar no Rio e eles necessitavam com urgência contratar uma outra para não ficarem sozinhos. Arranjaram uma senhora de quarenta e dois anos residente no interior do Estado. Casada, com três filhos, um homem e duas mulheres, todos já casados, com cinco netos. Com duas semanas que estava no emprego veio a pandemia e houve o fechamento de tudo. Zefa ia para casa no sábado e voltava na segunda feira, em carro alternativo que a apanhava e deixava no trabalho. Na terceira semana caiu doente, achando Zefa que adquiriu a doença com as pessoas que iam com ela no carro e doente passou quinze dias em casa. Contam eles que foi uma época trabalhosa. Durante esse tempo se comunicavam pelo watsap no áudio e estavam sempre a par da recuperação de Zefa.

A desenvoltura de Zefa como empregada era muito boa, zelosa e caprichosa no que fazia, cozinhava comida simples do dia a dia e mostrava mais habilidade nos pratos próprios de interior, galinha, cabrito e carneiro sem muita sofisticação. Sabia arrumar a casa de modo primoroso. Para ligar os eletros domésticos que requeriam mais habilidade e leitura de seus mecanismos recorria a Adriana para fazê-lo. Adriana entendia que aquele procedimento era um zelo que tinha com receio de quebra-los. Outra coisa que chamou sua atenção foi na limpeza do banheiro no dia de troca de toalhas. As toalhas tinham o nome de Adriana e Zé, porém em todas as vezes em que Adriana servia-se do banheiro percebia que as toalhas estavam trocadas, insistia em dizer: “ Zefa, no lugar da minha toalha você colocou a de Zé e no lugar da dele você coloca a minha”. Mas não havia jeito, sempre que ocorria a limpeza do banheiro as trocas de toalhas aconteciam. De tanto insistir deixou de lado.

O que que ocorria? Adriana descobriu que Zefa era analfabeta, sabia apenas assinar o nome e isso demonstrava quando colocava sua assinatura no recibo do esocial. Adriana começou a constatar que ela nunca escrevia, só falava no áudio do telefone; quando dava uma receita de comida ela relutava em fazer; o remédio do neto para ser dado encontrava dificuldades. Adriana conversou com Zefa perguntando se havia frequentado escola e qual? Foi quando Zefa esclareceu dizendo: “Dona Adriana eu tenho desgosto e maior vergonha porque eu não sei ler, nunca frequentei escola. Quando era pequena eu e meus irmãos ajudavam na roça e de modo que todos nunca fomos. Vontade tive muita”. Constata-se que Zefa é muito inteligente. Apesar de ser analfabeta, sabe movimentar-se, andar de ônibus e fazer conta de cabeça, passar troco no comércio. Os filhos fizeram o primário e sabem mexer com o celular e a ensinam. Adriana gostaria que Zefa frequentasse a escola, pois perto da sua casa há um colégio que desenvolve o programa de Educação de Adultos, mas não aceita. Nessa altura resolveu sua vida à sua maneira e diz com sua visão ingênua que “ a educação na sua vida não fez falta”.

Este caso supra narrado é o retrato de milhares de pessoas que durante sua vida foram privadas ou não tiveram oportunidade de frequentar escola e que constitui contingente de analfabetos ou semianalfabetos no país. O não acesso à educação provoca consequências irreversíveis advindo toda sorte de limitações para comunicar-se com o mundo. Dificuldades de compreensão e interpretação de textos ou de informações básicas, como: leitura de placas e avisos etc. Vivendo em muitas ocasiões à margem da sociedade, não conseguem engajar-se no mercado de trabalho uma única vez. Fenômeno social explicado pelo cientista político Lúcio Kowarick em seu livro “Capitalismo e Marginalidade na América Latina” (1981). É um estudo completo sobre as desigualdades sociais, suas causas e exclusão, tocando fundo nas questões políticas, educacionais, urbanas e na estratificação social. O que se constata na história de Zefa é a realidade dura do que acontece. Aqui, experimenta-se a consequência da injustiça social causada por questões estruturais e conjunturais da sociedade brasileira como um todo.

Só através de uma educação integral é que o homem alcançará a verdadeira liberdade, origem e sustentáculo da democracia, liberdade conquistada pelo ato de educar, dando ao ser humano o poder de melhor discernir sobre o que lhe é mais conveniente, ao opinar e deliberar sobre o seu próprio destino.

Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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