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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Um grande romance

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publicado em 28/02/2024 às 07h00
atualizado em 27/02/2024 às 13h37

Estou sempre a ler e a reler um grande romance.

O que seria mesmo um grande romance? Para mim, não é somente aquele que contém muitas páginas e longos capítulos, mas, sobretudo, aquele que possui, na sua configuração estrutural, qualidade estética e rica experiência humana.

Faço essa leitura ao mesmo tempo em que leio, em ritmo alternado e contínuo, um livro de contos, de crônicas, de poemas ou de ensaios. Esses livros, devido a certas particularidades intrínsecas às suas respectivas formas discursivas, dão-me o repouso necessário na difícil, embora prazerosa e insubstituível, empreitada em que consiste a leitura de um grande romance. Um grande romance como, por exemplo, Guerra e paz (Tolstói), Em busca do tempo perdido (Proust), José e seus irmãos (Thomas Mann), O homem sem qualidades (Robert Musil), O Jogo das contas de vidro (Herman Hesse), Os irmãos Karamázovi (Dostoiévski), Cem anos de solidão (Gabriel Garcia Márquez) e Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa).

Diferente do conto e do poema, nos quais a tensão e a intensidade das emoções vividas exigem a leitura de um fôlego só, um grande romance se permite e parece pedir momentos de descanso, de relaxamento, para que o leitor possa se reabastecer de energia e alento, dando, assim, continuidade à longa e lenta viagem da leitura.

De outra parte, um grande romance, ao contrário daqueles gêneros referidos, pode possuir altos e baixos no decorrer de sua narrativa, o que seria impensável no caso do conto ou do poema. Até excessos formais e estilísticos não comprometem o valor artístico de um grande romance. Tudo me leva a crer que certas licenças poéticas são cabíveis em sua economia textual radicalmente diversa daquelas que presidem o poema, a novela e o conto.

Ao fio seminal que sustenta o processo de fabulação em torno dos conflitos humanos, podem se associar situações neutras de mera descrição, entrechos autônomos que são contos legítimos, ou o movimento digressivo pelo qual o narrador ou os personagens debatem temas e ideias em verdadeiras páginas do melhor ensaísmo crítico.

Neste sentido, a história, a ciência, a filosofia, a religião, a ética e a estética, entre outros saberes, passam a integrar a escrita romanesca, constituindo aquilo que Roland Barthes, ao refletir sobre as obras de literatura, chama de mathesis, camada textual que se junta a mimesis e a semiose na corporificação da escrita literária. Conteúdos, representação e forma se fundem na articulação de uma visão de mundo que só um grande romance pode comportar.

Posso passar alguns dias sem a leitura de livros filosóficos ou científicos, sem a consulta às obras de referência (enciclopédias, bibliografias, dicionários, antologias e gramáticas), sem os ensinamentos criteriosos dos manuais didáticos. Só não consigo passar um dia sequer sem frequentar este ou aquele capítulo, esta ou aquela passagem, de um grande romance.

Penso que um grande romance faz a síntese entre os apelos racionais e emotivos, entre o pensamento e a sensibilidade, entre a realidade e a imaginação. Por isto mesmo me parece o gênero dos gêneros, a súmula refinada no âmbito da criação literária. Sinto que há uma misteriosa didática embutida em suas armadilhas ficcionais, uma indefinível pedagogia, cujos princípios, nem sempre perceptíveis, tendem a ampliar o olhar do leitor sobre os sortilégios da existência e os sigilos da linguagem.

Na minha vida de leitor, um grande romance funciona como o coro na tragédia grega. Pontua os passos das outras leituras, abre caminhos para a compreensão de outros textos, enuncia e anuncia, em rotação dialética, as verdades que se formulam nos poemas, nos ensaios e nos outros discursos.

Eis por que estou sempre a ler um grande romance.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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