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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Adoro velório!

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publicado em 30/08/2023 às 07h00
atualizado em 29/08/2023 às 19h33

 

Não se espante, respeitável leitor. Há um outro lado dos velórios. Um lado bom com sabor de vida, que a mim me faz bem e quero crer que a muitos outros que conseguem penetrar nos reinos cristalizados de seus ritos e formulações.

Não o revelo para me exibir e não quero dizer com isto que gosto quando alguém morre ou que, muito menos, aprecie o sofrimento alheio. Quando morre alguém de quem se gosta, o que fica por aqui sofre muito pela dor da perda e pelo mistério que ultrapassa os limites da compreensão humana. Isto é perfeitamente compreensível e com isto devo (e devemos) ser solidário, irmãos que somos, de natureza e de destino.

No entanto, parece haver um ângulo dialético dentro da experiência da morte. Seja a morte de um simples conhecido, parente distante, ilustre confrade, seja a morte mais íntima dos que compõem o raro ciclo daqueles que amamos. Já perdi pai e mãe, avós, tios, primos, irmãos e amigos do peito. Sei do que estou falando.

Para mim, o velório não é só o dia do morto ou da morta. Nem é só o dia da morte. É, também, em certo sentido, o dia dos vivos! O dia em que, nem ouso entender as estranhas razões nem os critérios desta lógica indecifrável, posso reencontrar pessoas queridas, há muito tempo não vistas nem abraçadas. Pessoas que, estando ainda vivas, lembram a mim mesmo que também estou vivo, e que, se a “vida é uma agitação feroz e sem finalidade”, é também milagre, como ensina o poeta.

De um lado revejo aquela tia muito amada a quem não via faz tempo; de outro, abraço o primo que mora distante ou aquele velho amigo de infância, hoje homem velho e vivido, que a exigência incontornável do morto ou da morta o coloca de novo diante de mim, na esfera renovável de minha vida.

Dia de velório é, portanto, dia de vida. Dia da vida. Pelo menos, para mim e para meu jeito heterodoxo de apalpar as coisas do mundo. Não que o sofrimento sincero de alguns não me comova, porém, insisto, no âmago da comoção mais profunda, é ainda a a veia da vida que pulsa com vigor e vitalidade.

O morto ou a morta que ali estão, no repouso e no silêncio eternos, parecem indiferentes a todos àqueles que a ele ou a ela vêm dar adeus no ato singelo da última homenagem. Indiferentes àqueles e a tudo. Quem sabe, exilados dentro de si mesmos no conforto que deve ser habitar paragens desconhecidas e sem nome.

Quando cumpro com este dever humanitário e presto meu último preito a este ou àquele morto ou morta, mesmo que mui rápido, olhando o morto ou a morta pela derradeira vez, tenho quase sempre a sensação de que ele ou ela já não estão mais ali, apesar da presença material do corpo, inerte e mudo. Há mesmo, em alguns, um ar de ausência, certa distância inapreensível, ou, não raro, certa ironia pouco perceptível pela aura dos vivos que proseiam acerca de um tudo em derredor do esquife.

Quando da morte de meu pai, tive este impacto de modo muito intenso, e assim o registrei numa das passagens de As horas mortas:

“{…} Meu pai estava lá, como todo morto, num caixão, no centro da sala, exposto à curiosidade da visitação. Mas, para que isto? Pergunto-me e não tenho resposta. A morte é uma experiência pessoal, intransferível, misteriosa… Vejo nela a plena perfeição. A morte deve ser preservada, deve ser intocável. É algo que extrapola a órbita das nossas vivências ordinárias. A morte é sagrada!

A sensação que tive é que o morto – meu pai – estava num deserto. Indescritível a sensação de que ele estava ali, mas também de que ele não estava ali. Ou seja, a morte a estabelecer fronteiras enigmáticas entre a ordem, o tempo e o espaço, agora pressentidos de maneira diferente. Depois, com os anos, o sentimento esquisóide da separação, do deslocamento, da lembrança. Da lembrança que é uma forma de ver e de não ver, de ter e de não ter, enfim, de procurar e não encontrar”.

Sei: esta dor foi minha e o foi à minha maneira. Meu pai se foi. O que ficou, no entanto, foi a vida, já consagrada, por mais paradoxal que seja, nos pequeninos rituais do velório que a tantos juntou, para falarem dele e da sua existência. Porque velório não é só dia de morte. É também dia de vida. E se a morte é sagrada, a vida também o é.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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