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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Passeio pelos dicionários

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publicado em 23/08/2023 às 07h00
atualizado em 22/08/2023 às 17h03

Pode-se passear pelos dicionários. Tente, caro leitor, partir de um verbete de seu interesse e tentar esgotá-lo, compulsando as chamadas em asterisco dos termos internos a ele relacionados. Creio que, mais que um passeio, tal experiência se transformará numa viagem sem fim.

Se prazerosa ou não, isto vai depender das condições do leitor, de suas circunstâncias psicológicas, de seus interesses cognitivos, de suas diretrizes imaginárias, de sua sensibilidade, de sua memória, de sua capacidade de se deixar seduzir pelo enigma das palavras. Enfim, de mil e uma variáveis que presidem o movimento singular da subjetividade.

Abro, ao acaso, o Pequeno dicionário básico de filosofia, de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, na letra “E”, para verificar o conceito de “Estoicismo”. Apesar de sintético, o verbete toca nos pontos essenciais da informação: origem etimológica da palavra, nome do fundador da referida escola, a propósito, Zenão de Cício; desenvolvimento a partir da integração da física, da lógica e da ética, os princípios fundamentais e os três períodos históricos, a saber: o do fundador, difundido principalmente por Cleantes e Crisipo; o estoicismo médio de Panécio e Posidônio, e o período romano, com Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio.

Devo dizer que neste curto espaço deparo-me com cinco chamadas em asterisco, convidando-me, assim, a prosseguir a viagem aberta com a leitura do verbete. Ei-las, pela ordem: “Zenão de Cício”, “Pórtico”, “Cosmo”, “Ataraxia” e “Atomismo”.

Indo verificar cada uma delas, certamente delas partirei para outras, a experimentar um périplo cruzado e circular, de idas e voltas, sem um ponto final. Não seria isto, este movimento incessante à procura dos significados e dos sentidos a essência mesma dos dicionários? Sua dimensão quantitativa, seu paradigma fechado, sua organização intrínseca parecem funcionar como forças catalíticas, na medida em que cada verbete, dialogando entre si, abrir-se-ia para outros, descortinando mundos inesperados e imprevisíveis.

Ao checar o vocábulo “Ataraxia”, isto é, “Termo grego designando o estado da *alma que nada consegue perturbar”, observo o asterisco em “alma”, e, mais à frente, o de *époche. Só por curiosidade vou à “alma” e, em chegando lá, descubro que terei de ir a “corpo” e a “espírito”, assim sucessivamente num exercício de leitura que nunca acabará.

Os dicionários, e não só os de filosofia, são infinitos. Os dicionários contêm a possibilidade de tudo, a vida e a morte dos conceitos e das categorias, o germe das ideias, a corrente dos pensamentos, o fogo intuitivo, a racionalidade, o halo de poesia congelada na raiz de cada palavra; o encanto, o espanto, o entusiasmo, isto é, Deus dentro de si. Com a eternidade e outros idiomas indecifráveis.

Valesse a metáfora, diria que os dicionários são a bíblia dos livros, e como livro fundante, a melhor metáfora da própria vida. Tanto é assim que nenhuma leitura o torna prescindível, nenhuma experiência, no âmbito do conhecimento e decerto da criação, pode dispensá-lo; nenhuma certeza científica, nenhum raciocínio filosófico, nenhuma emoção estética subsistem sem as marcas incontornáveis de sua vertical sabedoria.

Por isto mesmo não há leitura mais essencial, não há leitura mais lúdica, não há leitura melhor que a leitura dos dicionários. Neles se configura tudo. A filosofia, a ciência, a arte, a linguagem, o mito, a religião, tudo se entrecruza por entre a lógica dos seus verbetes entrelaçados, deflagrando os pontos de partida para as descobertas e para o mistério.

Trouxe apenas um exemplo mínimo, com um dicionário de filosofia. Um dicionário básico, uma obra propedêutica, um livro didático. Fico imaginando o universo fantástico que não encontraria se me fosse dada a pequenina glória de rastrear as páginas de dicionários de outra ordem, dicionários heterodoxos, idiossincráticos, insólitos e inimagináveis, saídos, por exemplo, do engenho poético de um Jorge Luís Borges ou de um Ítalo Calvino.

Por exemplo: Dicionário de fantasias noturnas. Dicionário etnográfico de criaturas inexistentes. Dicionário dos mortos anônimos. Dicionário dos demônios interiores. Dicionário distópico de civilizações esquecidas. Dicionário de poemas perdidos. Dicionário da loucura. Dicionário do medo. Dicionário do silêncio, etc. etc., etc.

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(Em tempo: a coluna de hoje é para meu amigo Assis, amante dos dicionários)

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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