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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Acontecimentos literários

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publicado em 05/04/2023 às 07h00
atualizado em 04/04/2023 às 13h46

 

A publicação de Pequenos poemas em prosa, de Charles Baudelaire,  (foto) em 1862, na revista La Presse, foi considerada por Théodore de Banville um “acontecimento literário”. Muito mais que As flores do mal, de 1857, na sua fatura métrica ainda atrelada a certos dispositivos da poesia clássica. Na linhagem de Aluysios Bertrand, com os Pequenos poemas em prosa, Baudelaire inaugura um novo gênero poético, explorando, assim, campos pouco cultivados na geografia literária da modernidade.

A propósito, os acontecimentos literários se caracterizam, sobretudo, pelo impacto da novidade e da originalidade que certas obras apresentam, quer no plano formal e estilístico, quer na esfera semântica e ideológica. Esteticamente, o acontecimento literário refaz os alicerces da tradição, abala suas estruturas modelares, sinaliza para a possibilidade de outros caminhos. Enfim, o acontecimento literário estabelece pontos decisivos e as referências da crítica e da história literárias no afã sistemático de analisar e compreender a ordem e o processo da criação.

Há obras literárias que constituem, de fato, um acontecimento. Outras, e não são poucas, nem tanto!

Em âmbito brasileiro, um dos grandes acontecimentos literários é Os sertões, de Euclides da Cunha, publicado em 1902. Os mestres da crítica de então, em especial Araripe Júnior e José Veríssimo, como que sucumbiram perante a sua singularidade, marcada particularmente pelo insólito conluio entre os estatutos estéticos da linguagem e a densidade científica do conteúdo. As partes em que se subdivide, isto é, “A terra”, “O homem” e “A luta”, compõem o primeiro ensaio de civilização da literatura brasileira, a trazer à tona as intensas desigualdades sociais de um país dividido entre litoral e sertão, entre exército e jagunços, entre história e mito, entre as elites hegemônicas e a plebe desamparada.

Outro acontecimento literário ocorre com a publicação de A bagaceira, de José Américo de Almeida, em 1928. “Búfalo do Norte”, para me valer da expressão do crítico Sérgio Milliet, o paraibano recorta, com seu romance trágico, novas veredas no espaço da tradição romanesca.  Atento também às antinomias dos modos de produção e aos resquícios feudais de uma economia agrária, a narrativa de Zé Américo também faz sua leitura crítica do Brasil, pondo em cena os dramas da violência e da fome de suas regiões esquecidas.  Tristão de Athayde, de seu pontificado crítico, reconheceu a grandeza do romance, principalmente pelo equilíbrio entre artefato literário e a configuração humana.

Depois destes, o grande acontecimento literário vai ser o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, publicado em 1956. Mais que os outros, aqui a transfiguração mítica perpassa os órgãos da linguagem e os músculos da ação, envolvendo os personagens no clima épico característico das narrativas clássicas, a exemplo da Ilíada, da Odisseia e da Eneida. O fio condutor é a voz de Riobaldo. À trama da linguagem correspondem as peripécias da fabulação. O sertão está fora e está dentro. É físico e metafísico. O amor é tragédia. As pessoas não morrem: se encantam. Não há Deus nem há diabo. O que existe é o homem no meio do mundo. É travessia.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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