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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

 Bom poeta me acompanha

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publicado em 22/03/2023 às 07h00
atualizado em 21/03/2023 às 14h19

Abrahão Costa Andrade (1974) tem formação em filosofia. Sua poesia tem acentos filosóficos, mas o poeta não se deixa cair na armadilha fácil do apelo doutrinário. Evita a teorização didática e investe, de maneira sólida e original, na energia poética das palavras e na espessura de um pensamento lírico que nos renova a percepção das coisas e do mundo.

Sua data de nascimento me diz que ele integra uma geração posterior a minha, que deu um Lúcio Lins, um José Antônio Assunção e um Águia Mendes. Sua geração é a de Edônio Alves Nascimento, Ed Porto, Antônio Mariano, André Ricardo Aguiar, Linaldo Guedes e, entre os mais novos, Astier Basílio e Bruno Gaudêncio, só para citar aqueles de presença visível e com inegável desenvoltura no trato com a linguagem.

Afroameríndia (tratado da sensibilidade) (1992); Mulãria da Macambária (1994); O idioma dos pães (1996); Educação do esquecimento (2009); Punhal a língua (2014) e A casca do tempo (poemas de tempo & desaforo) (2017) constituem, por enquanto, o seu patrimônio poético, numa demonstração de um esforço criador dos mais disciplinados e mais instigantes, se tenho como medida a meditação estética e a sondagem existencial.

Quero crer que, a partir deste instante de leitura e releitura de seus versos, sua arte expressiva ganha maturidade, sobretudo em Educação do esquecimento, já em seu talhe borgeano, e em A casca do tempo, que vejo e sinto como um pequeno tratado reflexivo acerca dessa categoria metafísica que tanto inquietou Santo Agostinho e Henry Bergson.

Mas não pense o leitor que as aporias e os silogismos do discurso filosófico enfeixam-se, aqui, no truque vazio dos hermetismos de ocasião em que tantos poetastros se comprazem, como se participassem de uma farra de cadáveres, embriagados com a sua própria podridão. Não. Em Abrahão Costa Andrade a realidade (o tempo, principalmente o tempo, a cidade, a casa, a irmã, as ideias e as emoções) não se esconde através da máscara dos falsos experimentalismos linguísticos, porém, revela-se, inteira e enigmática, na sua densidade semântica, na sua capacidade de ser e não ser, de ser mais e muito mais que aquilo a ser domado pelas táticas e artifícios de um paradigma estilístico.

Se no primeiro poema de A casca do tempo, “A cidade e seu duplo”, versos como “o rio sabe-se a si mesmo ∕ como a cidade nele se sabe”, lembram certos ecos cabralinos, embora esta elegia sobre o rio Tietê possa nos levar às águas escuras do longo poema de Mário de Andrade, Abrahão não perde, por sua vez, a autonomia de seu foco lírico, pois, nele, introduz o giroscópio da metalinguagem e amplia o espaço das margens, quem sabe, para uma terceira, misturando palavra e existência, como podemos inferir na possível mensagem destes versos magistrais:

o rio não está nem aí com o que se diga dele:

são confissões,

e o que vem de dentro já o atinge

anterior à fala;

é suporte para a sua autoimagem.

Para sondar o mistério do tempo e os outros motivos de sua seleção poética, o autor socorre-se de formas variadas. O minimalismo do haicai coexiste com a pegada mais expansiva de um texto como “Cotidiano”, na sua cadência aforismática, ou, em “Eu quero ficar em casa”, no seu tom monocórdico, quase prosaico, meio à Álvaro de Campos, mas com aquele sarcasmo tipicamente andradino, donde a poesia pode brotar com seus gumes de fogo, senão vejamos:

Não me chamem para vernissage, lançamentos

de livros ou de nave espacial. Nada tenho

de especial. Sou tranquilo e insuportável

como uma brasa. Por isso, deixem-me,

deixem-me ficar em casa.

“São Tomás de Aquino”, poema dedicado a Alda Costa Andrade, sua irmã, é dos mais tocantes, na sua prosódia subdividida em duas partes, visceralmente interligadas pelo timbre de fervor quase oracional que condiciona poeticamente o ritmo e a ideia que o formatam, na sua intrínseca estrutura artística. Leiamos a primeira parte, e veja, leitor, se tenho razão:

Filha, difícil é outro nome da vida.

É entre espinhos sempre que floresce a rosa.

Acertar é coisa de quem atira, e atirar,

Filha, é contra minha doutrina. Descalços os pés

Melhor sentes a terra que te fiz e de que te fiz.

E isso que chamas de fraquezas, não são.

Filha, é apenas o movimento bambo em direção

Ao eterno recomeço de uma alegria

Que a ti te preparo a cada instante. Olha!.

Outros poemas me parecem antológicos, a exemplo de “Coração precário”, “Palavras redondas”, “Bilhete”, “Agulha”, “Rochas”, “Ode ao presente”, “Ladra, é isso que é a morte”, “A tristeza é uma mendiga velha” e “Quando eu morrer eu quero me encontrar com Borges”. Em todos a poesia se faz aquela “metafísica instantânea” de que fala Gaston Bachelard.

Na Apresentação, a professora da Universidade Federal do Espírito Santo, Ester Abreu Vieira de Oliveira, afirma, como arremate de suas justas palavras: “Em sua poesia não há confecção intelectual que possa vir de um filósofo intelectual que é”. Assino embaixo.

Mas ainda diria: a poesia de Abrahão Costa Andrade, mormente aqui, neste A casca do tempo, no seu rigoroso equilíbrio entre som e sentido, para lembrar a exigência de Valéry, se tem acentos filosóficos como já disse, e se filosofia é sabedoria, o seu saber não vem das escolas, vem das vértebras incontornáveis da vida, da vida e sua “agitação feroz e sem finalidade”, para lançar mão do grande verso de Manuel Bandeira.

Sua poesia também traz a marca do leitor. Sua poesia também assume os riscos do diálogo. Há muitos textos entranhados nas malhas de seus versos. Há muitos versos que são plurais, não somente pela ambivalência das formas e dos metros, mas, sobremaneira, pelas provas polissêmicas, pelos indícios de sugestão estética, pela verticalidade do pensamento e pela verdade das emoções. Isto me parece mais que suficiente para dizer, sem titubeios e sem louvações ilusórias, lendo Abrahão Costa Andrade leio um dos mais fortes poetas de sua geração. Leio, não, releio e releio, porque um bom poeta me acompanha sempre.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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