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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

O fascínio do fac-similar

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publicado em 01/03/2023 às 07h00
atualizado em 28/02/2023 às 14h58

 

“Sou uma sombra! Venho de outras  éras.

Do cosmopolitismo das moneras…

Polypo de recônditas reentrâncias,

Larva do cháos telúrico, procedo

Da escuridão do cósmico segredo,

Das substâncias de todas as substâncias”.

Não estranhe, leitor que me lê, pois começo a saborear as primícias vérsicas do Eu, em edição fac-similar da Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, 2015. É como ter, em mãos, e sob as pálpebras ansiosas de quem tateia o mistério e o sagrado, os modestos originais de 1912, custeados por Odilon, irmão de Augusto dos Anjos.

Os tipos, quase em negrito, desenhados na retranca da velha ortografia; o ípslon, de “polypo”, e o cha, de “chãos”, ainda acentuado como “éras” e “moneras”, parecem tornar os vocábulos mais enigmáticos e mais icônicos, portanto, mais de acordo com os chamados semânticos que movimentam a alma dos versos.

Letras e fonemas, nessa edição que reimprime o original, como que assumem um estatuto hierático, hiroglífico, de esotérica beleza. A mancha amarela, quase sépia, que descansa, muda e silenciosa em sua moldura isométrica, recebe o selo negro de uma grafia salpicada de sinais expressivos e reticentes, como se procurasse, em seu terso alinhamento e em sua sugestiva diagramação, ecoar o espanto e o espasmo líricos da voz poética.

“Pairando acima dos mundanos tectos,

Não conheço o acidente de Senectus

Esta universitária sanguessuga

Que produz, sem dispêndio algum de vírus,

O amarelecimento do papyrus

E a miséria anatómica da ruga”.

E segue o poeta, dobrando o c, em “acidente”, priorizando o itálico e o latim, em “Senectus”, e acentuando, em aberto, o termo “anatómica”, naquele ritmo cadenciado e lógico de seus inimitáveis decassílabos.

Como é bom folhear essas páginas com a sensação de quem encontra, pela primeira vez, um livro amado, um livro raro, um livro único, um livro que vale toa uma biblioteca. O Eu, não o Eu e outras poesias, o Eu e poemas esquecidos, o Eu: poesias completas, nem Sonetos, nem Singularíssima pessoa. Apenas o Eu, solitário, com seus 56 poemas, na sobriedade e altivez do pronome pessoal todo em vermelho e isolado na capa.

Como é bom ler e reler tantos versos emblemáticos! Versos que, com sua rústica e insólita musicalidade, seu calor metafórico, suas alquimias sinestésicas, seus paradoxos desconcertantes, suas hipérboles desgovernadas e seu pensamento entre agônico e dilacerado, vêm me acompanhando vida afora nesse périplo de leitor apaixonado e obsessivo.

Essa edição vai se somar às outras. A de Castilho, a de Bedeschi, a da Livraria São José, a da Paz e Terra, a da Civilização Brasileira, a da Ática, a da Martins Fontes, a da Bertrand Brasil e a tantas outras que ocupam a minha estante nomeada de “A Ilha de Cipango”. Será uma edição especial, exemplar precioso, objeto de arte que me deixa feliz e orgulhoso por possuí-lo e tê-lo doravante à disposição.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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