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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Bendita Ângela Maria!

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publicado em 02/11/2022 às 07h00
atualizado em 01/11/2022 às 16h50

Nunca esqueci Zé de Freitas. Principalmente quando penso numa idiossincrasia de sua personalidade. Assegura-nos o ditado popular que todos temos um pouco de louco e um pouco de poeta. Verdade!

Casado com Dona Zélia, irmã do poeta Ronaldo da Cunha Lima, morava defronte de nossa casa, lá na Teixeira de Freitas, quase em frente ao Estádio Presidente Vargas, no bairro de São José, já entrando pelas primeiras ruas da Prata e avistando, de longe, e num sentido oposto, as avenidas abertas da Liberdade.

Anos 70 do século passado. Campina Grande estava a crescer. Campina Grande tem dessas coisas: ruas e bairros com nome de metais e de valores! Campina Grande tinha e tem seus tipos curiosos como qualquer cidade. E Zé de Freitas, quero crer, era um deles.

Além de nosso vizinho, Zé de Freitas era amigo de meu pai. Corretor de imóveis, dado aos negócios e também à volúpia da música e da bebida numa maneira de ser toda sua. Temperamento explosivo, porém, de largo e bondoso coração.

Era um sábado. E, como se sabe, todo sábado é mágico. Dia superior e peculiar no que concerne às inquietações e às fantasias do ser. Dia também disposto a receber aquilo que a beleza pode nos ofertar de verdade e de poesia. Dia de repouso. Dia de encanto.

Chegávamos da pelada matinal, e meu velho e querido pai nos recebia, a nós e a outros, com a cerveja gelada, no largo terraço de nosso bangalô de bairro. Ali, fazíamos a resenha dos lances amadorísticos daquele futebol de várzea, quando ouvimos, surpresos, gritos vindos da casa defronte.

Dona Zélia corre e procura minha mãe, num desespero só. E diz, entre lágrimas e mágoas: “Detinha, Zé de Freitas enlouqueceu. Disse que vai me largar. Acode, Detinha!”.

Na mesma hora Zé de Freitas, esbaforido e raivoso, tirava a Rural da garagem e dava marcha ré, sem respeitar muro nem portão. Já em frente de nossa casa, bota primeira e quer dar saída, mas o carro falha. Meu pai grita para mim: “Bota Ângela Maria na radiola, no último volume. Rápido”.

Corro e obedeço.

A voz da cantora e da intérprete, bela e dolorida, rasga a manhã com sua faca só lâmina e luz, poema a se fazer apelo naquele sábado mágico. Salvo engano, cantava “Meu ex-amor”, como que a ilustrar a ironia do destino.

Zé de Freitas ouve, já meio paralisado, e não resiste. Desliga o motor da Rural e grita para meu pai: “Beta (era assim que todos o chamavam), “Você é mesmo um filho da puta! Você sabe que não posso ouvir esta mulher cantando. Esteja fazendo o que estiver, paro tudo e vou beber!”.

E assim o fez como já o fizera tantas vezes, mesmo na azáfama dos contratos de aluguel e na compra e venda dos imóveis!

Veio juntar-se a nós e à cerveja, para, um pouco apaziguado, saborear a voz que mais amava na tradição dos boleros, tangos e samba-canções da música popular brasileira. Era o seu lado boêmio e romântico que dava as cartas na mais pura aceitação do princípio do prazer em detrimento do princípio de realidade.

Agora já não queria partir; já nem pensava mais em largar Dona Zélia; já começava a ver e rever a mulher de modo diferente; já reiniciava o enredo daquela história de sempre, acariciando a companheira de todos os dias e de todas as horas.

Bendita Ângela Maria!

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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