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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Começos de romance

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publicado em 22/06/2022 às 07h00
atualizado em 21/06/2022 às 15h49

 

Vou voltar ao tema do começo. Em Valeu a pena (2019), há uma crônica cujo título é “Começar é tudo”, em que procuro abordar as aflições e angústias que me assaltam na hora de iniciar um texto, ao mesmo tempo em que reconheço sua importância e, deslumbrado, cito alguns exemplos colhidos ao acaso nas páginas dos autores amados.

O primeiro verso de um poema ou a primeira frase de uma prosa ensaística ou ficcional são como a fisgada do peixe a fazer a mão trêmula do pescador levá-lo, aturdido e jubiloso, para o encanto de outras paisagens, que não a desse rio monótono e melancólico que passa por ele todos os dias no ramerrão de sempre.

Pelo menos comigo a coisa se dá assim.

Sinto, de imediato, depois de lido esse verso ou lida essa frase, que serei presa de uma intensa e inesquecível aventura da sensibilidade, da imaginação, do conhecimento e do prazer. Sei, e nunca me vi desapontado, que daí por diante vou viver um mundo diferente e conviver com gente da melhor e da pior espécie, porém, sempre gente especial que, nas suas vivências, como que me ensinam a maldição e a misericórdia, o mal e o bem, a beleza e a miséria, o poder e a fragilidade, assim como tantos outros artefatos misteriosos que se misturam na composição química da condição humana.

É impossível, por exemplo, não continuar a leitura depois que se lê uma frase como esta: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Cito a tradução de Modesto Carone e me refiro, é claro, à novela, A metamorfose, do escritor tcheco, Franz Kafka.

Fico imaginando o que se pode passar na cabeça do leitor que vai ler este texto pela primeira vez. “Certa manhã”, “sonhos intranquilos”, “inseto monstruoso”, eis aí os elementos iniciais que abrem múltiplas expectativas de leitura, provocando, decerto, a sua curiosidade e germinando os passos da tensão, da intensidade e da significação da narrativa.

Não importa o que virá pela frente. Depois desta frase, qualquer leitor está disposto a tudo no que concerne às ocorrências a serem vividas pelo personagem. O pivô da verossimilhança, mais que a lógica da veracidade, enraíza-se aí, no impacto e no inusitado de sua estranha semântica de onde tudo advém, quer no plano estético, quer na seara do humano e existencial.

Gosto também da maneira como Henry Miller (foto) começa Trópico de capricórnio: “Depois que nos livramos do fantasma, tudo segue com infalível certeza, mesmo no meio do caos”. Tradução de Aydano Arruda.

Duvido que algum leitor seja indiferente ao apelo significativo desse “fantasma” e, principalmente, a esse “caos” que se confronta com a “infalível certeza”. Creio estar aí o lance de dados de toda a autobiografia ficcional (há alguma que não o seja?) do genial escritor norte-americano. O grande personagem de Henry Miller é Henry Miller, mesmo sendo Henry Miller tantas coisas, completas e incompletas.

Neste assunto não posso esquecer Albert Camus, que assim abre o seu romance O estrangeiro, na tradução de Valerie Rumjanek: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”.

Para mim este é um dos mais belos, fortes e sintéticos começos de uma narrativa. O “talvez”, mais que qualquer vocábulo da frase, instaura o ácido da dúvida e traz à tona uma componente fundamental na caracterização do personagem. A opacidade das coisas, o absurdo dos acontecimentos, a contingência das criaturas, tudo se resume no apelo semântico dessa palavra dubitativa. Desse adjunto adverbial de dúvida que, se na mecânica da morfologia, é termo acessório, na economia da frase romanesca, é termo essencial.

E o que dizer de Ana Karenina, de Tolstoi, traduzido assim por João Gaspar Simões: “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”?

Esta sentença aforismática me fez e me faz pensar em tantas coisas! Os teóricos da literatura diriam que, nela, reside um exemplo típico de “índice de antecipação”, ou seja, uma prolepse seminal. Não discordo, mas vejo outras verdades literárias embutidas, que só a leitura completa do texto pode nos sugerir. Uma delas é que toda a história narrada no romance está contida aí, no limite inesgotável de sua intrínseca sabedoria.

Vá conferir, caro leitor!

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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