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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Augusto e as filhas mimadas

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publicado em 02/03/2022 às 11h20
atualizado em 02/03/2022 às 08h21

Nas Saturnais (Saturnalia), Macróbio dedica o Capítulo V do Livro II às jocosidades e modos de Júlia, (imagem) filha de Augusto. O príncipe, que tinha um espírito irônico e mordaz, até os limites da decência e quando a liturgia do cargo permitia – lembremos que ele também assumiu a função de Pontífice Máximo –, costumava dizer aos amigos que tinha duas filhas mimadas (filias delicatas), as quais ele tinha necessariamente de suportar (necesse haberet ferre), a República e Júlia…

Fico imaginando como um homem que aglutinou em si todos os poderes – militar, republicano e religioso –, tornando-se, por título, o Pai da Pátria (Pater Patriae), expunha aos amigos a dificuldade de lidar com os problemas, inclusive de corrupção e bandidagem, que existiam na República, depois, a partir dele, Principado romano.

Utilizando a sua autoridade de pai e de governante, Augusto enviou a própria filha para o exílio. Já a República, ele a manteve no limite do governável, situação em que permaneceu após a sua morte (14 d. C.), até enquanto durou o imperium de Tibério, seu filho adotivo e seu sucessor. Morto Tibério (37 d. C.), o espírito republicano, atolado em corrupção e desmandos, sobretudo sob Calígula (37-41) e Nero (54-68), degringolou, para ser reconstituído, em parte, por Vespasiano (69-79) e por Tito (79-81). Domiciano, outro dos filhos de Vespasiano (81-96), joga novamente a República pelo ralo, precisando da intervenção enérgica de Nerva (96-98) e de Trajano (98-117). A República romana, mesmo num estado forte, viveu numa gangorra até esfacelar-se e capitular diante do Cristianismo, para não perder de todo o poder.

A gangorra republicana, mais do que mimada, pode ser explicada pela constante sedução e às vezes conúbio com a voluptuosidade, significado que se pode aplicar ao adjetivo delicatus, -a, -um, em latim. Assim, como Júlia, reconhecidamente, entregue aos amores adúlteros. Podemos pensar, então, que o sentido de filias delicatas, empregado por Augusto, também cobre não só o fato de serem ambas, a República e Júlia, mimadas, mas também voluptuosas, sempre querendo em primeiro lugar a fácil saciedade dos sentidos, não a busca árdua pela conduta moral e pelo bem-estar de seus cidadãos, o que redunda no bem-estar de si mesma.

Transponho essa situação vivida por Augusto para os dias atuais, nos nossos fragilíssimos estados, ditos democráticos e republicanos, cada vez mais esgarçados, diante das investidas solertes e descaradas contra as suas bases. A vaidade, a ambição, a busca por poder e a necessidade de uma satisfação ilícita fazem o ser humano degradar tudo o que toca. Se já não há o pulso dos pais para os filhos mimados, todos – pais, filhos e o país – sucumbirão afogados na impotência, que ajudaram a construir, situação esdrúxula, em que se cobram mais direitos do que se cumprem os deveres.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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