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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Certidão de Nascimento

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publicado em 02/03/2022 às 06h57

 

Conheci Nascimento numa das mesas do Bar de Baiano, precisamente aquela sob a presidência efetiva do maestro Bebé de Natércio.

Negro de barbicha branca, chapéu de couro cor de algodão; generoso e macio como aquela gente de lá, daquele mundo de nós, seco e áspero como o espinho da cardeiro. No olho, a amizade; no peito, um bornal de virtudes; no coração, todo sentimento, para lembrar o poeta.

Eu acabara de dizer um poema revestido daquela angústia existencial que não cabe na métrica nem na rima, com fundo musical de Magalhães, ao violão, e Santiago, ao atabaque. Poesia e música sempre se deram bem numa miraculosa mancebia, sobretudo quando os sinais da noite asseguram que aquela lua, aquele olhar, aquele perfume ou aquele conhaque nos põem comovidos como o diabo.

Concluída esta estranha proeza, a de dizer um poema, típica de um poeta de gabinete, curtindo uma pontinha de inveja do poeta repentista, Nascimento pega da palavra e recita (desta feita temos uma genuína declamação) um longo poema de índole narrativa, como é peculiar à tradição da poesia popular.

Poema lírico, mas também jocoso e melodramático com o qual conquistou, de imediato, a admiração e o respeito dos circunstantes presentes, isto é, boêmios, bêbados, habitués, loucos, desesperados…

Daí ficamos irmãos. Eu, poeta erudito, triste e ensimesmado: ele, poeta popular, alegre e vitalista, porém, ambos estrumados pela seiva humosa e fertilizante da semente literária.

Alguns dias depois me chega às mãos, não aos ouvidos, um CD intitulado “Certidão de Nascimento”, com produção metabólica de Bebé de Natércio, este destemido visionário e semeador das lavouras musicais do condado dos Bancários.

“Certidão de Nascimento” vale, desde já, pela ambivalência do título. Se por um lado remete à figura do autor, sobretudo à raiz filológica do sobrenome, impõe-se, por outro, como registro de batismo da persona artística em que se transmuda o varão sertanejo, ou seja, o homem carpido e calejado pela labuta da vida.

Aqui, Nascimento se encontra de corpo inteiro: na voz, nos versos, na viagem que faz pelos cafundós poéticos da tradição oral. Ora, declamando seus poemas, à moda matuta, bem característica do lirismo ingênuo e gracioso, vezes sarcástico, vezes epopéico, do vasto repositório do lendário e do poemário da cultura popular; ora, fazendo as vezes de outras personalidades do cancioneiro, aquelas de suas “afinidades eletivas”, para regar o magico roçado de sua agricultura estética e existencial.

E é aí que topo, siderado ouvinte, com a melhor safra e com as legítimas pedras de toque da poesia popular, na expressão que crava, a ferro e fogo, as marcas lúdicas e severas da tradição poética sertaneja.

Pinto de Monteiro, Patativa do Assaré, Geraldo Amâncio, Dinis Venturino, Ivanildo Vila Nova, Daudet Bandeira, Oliveira de Panelas, Otacílio Batista, Leandro Gomes de Barros, Romano da Mãe D` Água, Inácio da Catingueira e tantos outros, de hoje e de outrora, são recebidos à beira do alpendre antropológico, cultural e telúrico que o poeta Nascimento inaugura, numa colheita festiva e solidária para os tempos do doravante sem fim.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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