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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

Mestra por amor

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publicado em 13/08/2021 às 13h23

A estratificação social demonstra as diferenças sociais; é construída com critérios socialmente definidos. Existe em todo mundo. Na sociedade brasileira essa desigualdade salta aos olhos, basta dar um passeio pela cidade e em seus arredores que se identifica, através dos bairros da periferia, das construções residenciais, do aspecto urbano, zonas de extrema pobreza e outras de elevado padrão social, econômico, cultural e educacional.

Nos pontos de semáforos podem-se ver num só lugar pessoas ricas, com carros Ferrari, Hilux, de luxo, e ao memo tempo veem-se pedintes que sobrevivem em baixo de viadutos. Situação problemática que é motivo de estudos para uns e agregada para outros, somando-se atributos como gênero, idade, crença religiosa ou etnia, características aceitáveis, desejáveis ou repulsivas. A sociedade, por mais simples ou complexa, compõe grupos sociais que estão separados socialmente. Como se interpreta a pirâmide da estratificação social brasileira? Entendo que existem várias classes e que se pode, assim, construí-la. No ápice estão aqueles que vivem nababescamente, andam de helicópteros, etc.

Em seguida vêm os que vivem muito bem e com esbanjamentos; a próxima vive com tudo que necessita e ainda com sobras para o lazer e realizar viagens, é a classe média alta: após vem aquela que tem o necessário para viver e lhe permite de vez em quando ir a um restaurante e ter um lazer restrito, é a classe média baixa; e já constituindo a base aparece a classe pobre que tem o estritamente necessário para viver, que é a maioria, colocam-se aí as pessoas que não possuem as necessidades básicas satisfeitas e os miseráveis que vivem em condição sub humana. Estes aspectos são esmiuçados por Kovarick L. (1985) no seu livro Capitalismo e Marginalidade na América Latina, onde analisa com detalhes o constructo da estratificação social. Portanto, quanto mais alta a posição do indivíduo nessa pirâmide mais será seu acesso aos recursos materiais e imateriais da sociedade. Este assunto não se esgota aqui e nem é propósito discuti-lo. Foi mencionado para que superficialmente pudéssemos entender a narrativa dessa crônica.

Alice é professora de hidroginástica. Conversando com ela, contou-me um fato que me comoveu. Possui várias turmas na sua Academia, desde crianças a pessoas adultas e idosas, de várias classes sociais, da mais alta a mais pobre, em horários diversos. A turma de idosos têm aulas das 6 horas às 7; a dos adultos de 7 às 8. A docente relaciona-se com todos seus alunos muito bem e assume mais o papel de amiga do que de mestra. Nessa intimidade estabelecida converte-se em abrigo de seus lamentos e desabafos e, por conta disso, conhece profundamente a situação de cada um. Na turma das 7 horas há uma discente Júlia, de 56 anos, analfabeta, já aposentada como gari da Prefeitura e, com o pouco dinheiro que tem de reserva, aplica no pagamento da aula de hidroginástica. Júlia, apresenta-se alegre e divertida, nunca se viu triste, sempre tem resposta pronta mesmo com o português errado. Brinca com as colegas com aquela fala, que parece mais um dialeto. Durante as aulas as colegas a incentivam. Foi quando Alice teve a ideia de conversar com ela e saber um pouco de sua história e como chegou até ali!

Alice veio a notar que Júlia era analfabeta porque fizeram um grupo no WhatsApp e a comunicação só acontecia por áudio. Ela foi casada, tem uma única filha, logo depois de seu nascimento o pai abandonou-a. Ficou só, para bancar a função de pai e mãe, mas esforçou-se e deu estudo a filha que é formada, prestou concurso no Corpo de Bombeiros, passou, é Bombeira Civil independente. Alice perguntou a Julia em particular: “Júlia por que você só usa o áudio? Falou: “professora eu não sei ler”. Então seguiram uma série de perguntas e a mais importante: Você já tentou estudar? Respondeu que sim, e que já houvera várias tentativas, ia a escola, mas chegando lá sentia agonia na cabeça, ficava aperreada. Não teve jeito, não. Insistiu: você ainda tem vontade? Disse-me: “é o meu sonho”. “Então vou pensar para poder realizar seu sonho.”

A outra turma de alunos do horário de 6 horas tem uma senhora, professora, escritora de livros infantis, Sofia, de 70 anos. Casada com um funcionário de banco e empresário bem sucedido. Oferece a Sofia todo conforto, bem estar, tranquilidade necessária nesse momento que está inativa. Mãe de cinco filhos, três mulheres e dois homens. Todos formados e bem encaminhados. Ama alfabetizar, foi professora de alfabetização por vários anos, hoje aposentada. Exercia o magistério por diletantismo, porque não precisava, e o ganho era pouco. Para não perder o entusiasmo e alimentar seu espírito de escritora infantil mantém em casa uma escolinha para reforço escolar e alfabetizar, que chamou de “Recanto Feliz de tia Sofia”. Recebe seus netos, crianças da vizinhança e adolescentes. Diz: “Faço isso para não ficar parada em casa. Eu não sei viver sem ensinar; está no meu sangue.” É entusiasta da educação e dedica-se a ensinar não só português, mas matemática, utilizando procedimentos metodológicos didáticos próprios, produto da experiência de longos anos, constatando resultados que, quando empregados, se apresentam positivos. Envida todo esforço para alcançar os objetivos da aprendizagem, cria oportunidades prazerosas motivadoras para despertar o interesse dos discentes. Com esse comportamento incita-os a aprenderem a ler de modo eficiente e rápido.

Alice, sabedora do amor de Sofia pela alfabetização, pois sabia que havia alfabetizado duas servidoras que tivera em sua residência e que com quatro meses foram alfabetizadas, contou-lhe o caso de Júlia e não deu outra, Sofia logo tomou a iniciativa de querer conhecer Júlia e assim sucedeu. Alice provocou o encontro das duas, que mantiveram longa conversa e acertaram como seria dali por diante a rotina de aulas, para alcançar a alfabetização. A professora providenciou o material escolar próprio para o estágio de alfabetização. O início se deu no mês de junho. Todos os dias, de 9 às10, Júlia ia receber aulas e as tarefas que devia realizar sozinha em casa.

Tem três meses de aulas e já se percebe o progresso. Chamada para ler as placas, demora, mas acerta. Alice, que só conversava por áudio, agora escreve e pede para que ela diga o que escreveu. As colegas da hidroginástica também perceberam as mudanças no falar, em vez de “nós vai nós vamos.” A turma da hidro está planejando um passeio para Bananeiras e Júlia disse: “Eu vou ler uma mensagem no ônibus para vocês”. As colegas estão vibrando e incentivando. Sempre Alice, Sofia e Júlia trocam conversas sobre o desenvolvimento da aprendizagem, merecendo toda a atenção. Júlia, nas suas narrativas, não para de agradecer e contar as proezas de ler os letreiros e outras coisas que demonstram seu aprendizado. Alice fala: “Júlia daqui para o final do ano está completamente alfabetizada, contando até 100 e fazendo as quatro operações. A empolgação da docente faz dizer que quer levar Júlia a patamar mais alto. Vai ensiná-la, depois dessa etapa, ciências sociais. Quem sabe se ela não chegará a Universidade?”

O conhecimento do conteúdo da aprendizagem é a ferramenta para transformar o mundo. Não é à toa que se diz: quem conhece mais pode mais. Pode discernir, pode escolher, indicar a alternativa que mais lhe convém etc. É nítido, nesse conto, que a apropriação do saber promoveu em Júlia mudanças na forma de descortinar o mundo. Em seu ambiente nada mudou, mas a sua leitura interpretativa sobre ele é outra. Conscientizou-a de sua realidade sem, todavia, promover acomodação, mas para transformá-la. A sua convivência com colegas pertencentes a outro contexto social fez perceber que poderia chegar a igualar-se. Constata-se que a importância de Sofia em sua vida foi fundamental para que isso acontecesse. Sua dedicação no processo educativo fez de Júlia o sujeito de sua aprendizagem.

A docente converteu-se não apenas em informadora do conteúdo, foi mais além, exerceu o papel do verdadeiro educador. Na sua metodologia percorreu os passos que Dermeval Saviani (2012) enfatiza. Partiu de sua prática, que era sua realidade social, problematizou essa realidade, fez acreditar que o saber podia transformá-la. Tornou-a capaz de repassar o conhecimento aprendido e com isso modificá-la. O que foi ponto de partida, a prática, terá que ser o ponto de chegada, embora de forma diferente, a “práxis.” Sofia pode dizer que cumpriu literalmente o papel de educadora, pois se não tivesse aparecido na vida de Júlia, e graças a sensibilidade de Alice, nada disso teria acontecido. Verifica-se como pode mudar a vida das pessoas pelo processo educativo. Sofia nos demonstrou isso. Como seria bom que nossas escolas tivessem professoras como Sofia. Temos certeza que mudaríamos a realidade brasileira, Parabéns Sófia! você tem todos os méritos.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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