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O voo de liberdade das Muriçocas

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publicado em 27/02/2019 às 16h58

A decisão do bloco “Muriçocas do Miramar” em alterar o seu desfile gerou grande repercussão na Paraíba. Mais do que isso. A falta de patrocínio para dá ao desfile em 2019 o tamanho grandioso que merece e sempre ostentou, obrigou o bloco se reinventar e acendeu o sinal de alerta sobre o financiamento cultural no estado e no país.

Ao logo do tempo, o financiamento privado aos blocos do projeto Folia de Rua foi se esvaindo, até que se chegasse à atual conjuntura, onde os aportes se resumem a subvenção que a Prefeitura Municipal de João Pessoa oferece através da FUNJOPE e o patrocínio de cervejarias.

Percebam.

A economia – direta e indireta – gerada por esse tipo de evento para a cidade vai do vendedor ambulante ao dono do hotel. Da loja de fantasia à orquestra de frevo. Das empresas de segurança particular ao dono do som e do trio. Dos estúdios musicais de ensaio e gravação às produtoras de audiovisual. Do motorista de aplicativo e do taxista ao músico da banda. Da mulher do cachorro-quente ao restaurante mais chique.

Toda uma cadeia produtiva envolvendo cultura, gastronomia e turismo é movimentada nas duas semanas que antecedem o carnaval. Algo, aliás, que é muito simbólico para nós. Ora, na cidade “onde o sol nasce primeiro”, nada mais justo do que a folia também ser antecipada.

Simbolismos à parte… Parece que nada sensibiliza o governo do estado sobre financiamento público para a cultura. Nem a importância do Folia de Rua (me refiro ao projeto estratégico de economia criativa e turismo, não sua diretoria), nem a dimensão cultural do bloco Muriçocas do Miramar – patrimônio imaterial do estado reconhecido pela lei 9.631/11. Nem mesmo o conservadorismo danoso à cultura do país entoado pelo governo Bolsonaro.

Nada. Absolutamente nada parece mudar a estratégia ultrapassada do governo em ensimesmar a execução de todos os recursos do orçamento estadual da cultura e direcioná-los ao prazer da sua conveniência política. Uma vergonha, em se tratando do governo de um partido progressista como o PSB, que tem experiências exitosas em outros estados, e no último congresso nacional estabeleceu a economia criativa como prioridade na sua agenda política.

Para que se tenha uma ideia do absurdo: a última em vez que o governo do estado direcionou recursos para os blocos do Folia de Rua se datava 2010 e o governador ainda era José Maranhão.

Vale lembrar que o projeto e o bloco foram amplamente utilizados como discurso de valorização à cultura em períodos eleitorais por esse pessoal. Basta dizer que o hino da campanha à prefeitura do então candidato Ricardo Coutinho era nada mais nada menos que uma paródia do hino das Muriçocas. (sic)

Quiséramos nós que a letargia estatal no tocante ao financiamento público para a cultura se resumisse a implicância política com representantes de blocos.

Em oito anos de Ricardo Coutinho, apenas um (01) único edital do Fundo de Incentivo à Cultura – Augusto dos Anjos fora lançado, o mesmo aconteceu com o Prêmio Linduarte Noronha do Cinema Paraibano. Para quem gosta de comparações, um dado: a lei n.º 7.516/2003, que estabelece do FIC, criada no governo Cássio Cunha Lima do PSDB, foi executada em todos os anos do mandato do tucano. Sim, em todos os anos do mandato do TUCANO.

Sob o argumento de que a norma necessitara de atualização, entre elas, a possibilidade da norma acolher o incentivo fiscal para empresas, o chamado mecenato, o governo RC levou todo mundo na conversa e enterrou a aplicação do FIC. Sim, enterrou a aplicação do FIC.

A estratégia era clara: financiar projetos culturais dá autonomia aos agentes e artistas, que com os recursos podem produzir e fazer circular suas produções, ou seja, desenvolver-se culturalmente e economicamente, sem dever favores ao governante de plantão, já que fomento à cultura é matéria constitucional, e, portanto, obrigação do Estado em todos os níveis.

Mas, para que garantir autonomia aos artistas, se reformar equipamentos culturais também é fomento à cultura e traz mais visibilidade?

Eis o cálculo da política cultural feito pelo Mago nos últimos oito anos.

Vamos reconhecer que as estruturas ficaram boas, mas não custa perguntar: como produzir sem financiamento? Como fazer circular o pouco que se produz sem financiamento? Realizadas as reformas qual será a justificativa para não executar desde já a lei 7516/03 do FIC?

Não que eu queira fazer apologia à estatização da cultura. A produção cultural deve ser livre, as estratégias individuais e/ou coletivas de produção e comercialização devem se  dá ao entendimento de cada artista e agente cultural, mas é dever do Estado Brasileiro fomentar economicamente essa atividade. Como faz em outras atividades econômicas.

Isto deveria ser o óbvio, não é para o pessoal do “Projeto”. Como se já não bastasse a conjuntura nacional vil e conservadora para cultura, a postura indolente do governo da Paraíba acaba por corroborar com o discurso de desmantelamento das ferramentas de fomento à cultura do governo Bolsonaro, além de estimular as prefeituras a também não investirem no setor.

Mas voltando à Folia…

A natureza deste debate é ampla, não podendo, portanto, ser resumida ao período momesco; mais do que nunca, essa pauta precisa correr ao longo de todo ano. Como acontece em outros locais. Trazendo o exemplo de Pernambuco, onde Estado e prefeituras lançam editais de fomento e os artistas produzem e circulam, é exatamente no Carnaval onde toda essa diversidade cultural se encontra para consolidar a festa realizada pelo estado vizinho como uma das maiores do país.

Assim, repensar o modelo do Folia de Rua além de desafio, é uma necessidade. A logística, a ocupação de outras áreas da cidade, a programação, os horários de desfiles. Muito tem se falado em trazer os desfiles da folia para o dia ao invés da noite, solução que requer envolvimento dos órgãos envolvidos, mas a sugestão é válida demais.

Depois, é preciso compreender que os recursos públicos injetados no projeto não podem ser geridos sem a transparência que os tempos atuais exigem, muito menos sem um plano executivo que respeite a dimensão dos blocos envolvidos. Uma das principais reclamações dos representantes das Muriçocas é o desrespeito com o direito de personalidade do bloco.

A agremiação acusa a Associação Folia de Rua de promover captação de patrocínio privado e de fechar acordos comerciais com empresas sem repassar as cotas justas, o que, no mínimo, se configura como uso indevido de imagem de pessoa jurídica, conforme interpretação do art. 52 do Código Civil dada em entendimento recente da 4ª Turma do STJ, um ilícito que cabe reparação por danos morais. E, em última instância, o comportamento da entidade para com o bloco, se confirmado, pode configurar crime de apropriação indébita de coisa infungível, conduta tipificada pelo art. 168 do Código Penal Brasileiro que tem como pena, reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. O que demonstra que um evento dessa magnitude não é brincadeira e implica cuidados técnicos, políticos e jurídicos.

A prévia carnavalesca da cidade também não pode deixar de fora a ocupação do Centro Histórico. O local tem recebido investimentos pesados em requalificação por parte da prefeitura, de modo que é um erro relegá-lo o segundo plano. Uma questão que pode colaborar para este fim é a reativação do projeto “Folia Cidadã”, contrapartida social da Associação Folia de Rua, a ação deveria ser transformada em condição sine qua non para liberação de recursos públicos. A iniciativa que atendia crianças e adolescentes da Comunidade Porto do Capim se justifica pela própria relevância.

Levando-se em conta todas estas provocações, o que se percebe é que a crise envolvendo o bloco Muriçocas do Miramar, acabou nos remetendo a análises e reflexões sobre a forma equivocada com a qual estamos tratando o nosso carnaval e a nossa produção artístico-cultural. Quero muito acreditar que esse voo de liberdade das Muriçocas em 2019 signifique o prenúncio de um tempo de mudanças de postura e de algumas rupturas. Quero viver pra ver e colaborar!

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