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A gaúcha Neusa Thomasi poderia ter seguido uma carreira de destaque como atriz no Brasil ou no exterior. Mas há 30 anos, quando integrava o grupo Macunaíma, do dramaturgo Antunes Filho, participou de uma turnê em Paris de uma peça da companhia e decidiu se instalar na França. E em vez dos palcos dos teatros tradicionais, optou por criar espetáculos com crianças e jovens nas ruas de periferias pobres de Paris.
A brasileira vem contribuindo para o desenvolvimento de políticas culturais nessas localidades, onde a maioria dos moradores é de origem imigrante, o desemprego é mais do que o dobro da média nacional e muitas vezes não existem cinemas nem teatros.
Artista engajada, ela diz se interessar pela vida nas periferias e ser “sensível” aos problemas de comunidades carentes.
“A arte é uma ferramenta para o desenvolvimento de um povo. Ela deve ser um instrumento para acordar as pessoas e melhorar suas vidas. A função do artista é mudar a sociedade”, conta Thomasi à BBC Brasil.
Mas antes de a gaúcha de Santa Maria passar a lidar com o que chama de “inserção social por meio da cultura” – com peças escritas e dirigidas por ela que abordam problemas vividos pelas pessoas em subúrbios carentes -, tinha planos de atuar como atriz na Europa.
Para isso, ela fez, no final dos anos 80, workshops e estágios com renomados dramaturgos das principais companhias teatrais do continente, como o polonês Jerzy Grotowski, na Itália, e o inglês Peter Brook.
O fato de ter apenas US$ 300 (R$ 980, em valores atuais) no bolso e malas repletas de livros de museus parisienses quando decidiu, em 1987, não embarcar de volta ao Brasil após a turnê do Macunaíma não a desencorajou.
Thomasi também estudou na célebre Academia Russa de Artes do Teatro, em Moscou (conhecida como GITIS), com formações complementares em dança, canto, acrobacia e sapateado.
Após esse curso, ela afirma ter se sentido uma “atriz completa”. De volta à França, criou, em 1991, a Compagnie des Contraires (Companhia dos Contrários).
A gota d’água, que a fez desistir definitivamente dos palcos tradicionais, ocorreu após a participação da companhia no festival de teatro de Avignon, um dos maiores da Europa.
“Depois dessa experiência disse que nunca mais iria a Avignon. É tudo muito artificial. Nos grandes centros a arte é muito elitista. A arte tem de ter uma verdade”, afirma.
“Senti que o meu caminho era trabalhar com arte popular e desenvolver um trabalho nas ruas.”
Sua trupe, por falta de recursos, havia percorrido a pé os mais de 700 quilômetros entre Paris e a cidade do sul da França.
Foi no Rio Grande do Sul que Thomasi começou a desenvolver o método de trabalho que ela aplica na França: a “encenação de emergência”, ou seja, criar atividades culturais “ali e agora” que levam em conta as necessidades do grupo, seu nível de instrução e os meios disponíveis para colocar isso em prática.
Professora de educação artística em uma escola municipal de Santa Maria, ela tinha como alunos ex-presidiários e domésticas que tentavam concluir o ensino médio. “Foi ali que percebi que não sabia nada sobre como ensinar artes à população.”
Thomasi descobriu por acaso, em 1995, a problemática periferia de Chanteloup-les-Vignes, a cerca de 40 quilômetros de Paris, conhecida por casos de violência urbana e onde muitos franceses preferem não colocar os pés.
Ao se deparar com o “deserto cultural” da cidade, onde até hoje não existem cinemas nem casas de espetáculos, ela decidiu se instalar no local, que se tornou a sede da Compagnie des Contraires.
O grupo, que mistura em suas atividades artistas profissionais e a população, também desenvolve projetos em várias outras periferias francesas.
Os primeiros anos de sua companhia em Chanteloup-les-Vignes não foram fáceis. Ela sofreu ameaças de traficantes de drogas, problema que persiste até hoje.
Há alguns meses, a caminhonete multicolorida e com desenhos de flores que ela usava para levar seu teatro itinerante a outras periferias da região foi queimada pelos traficantes.
Thomasi conseguiu obter um novo veículo, menor e também todo florido, mas lamenta a perda do primeiro por ter sofrido o que ela considera um ato de represália.
“Quando você trabalha nas ruas, vê tudo o que acontece. Isso não agrada aos traficantes. Além disso, os jovens que participam das minhas atividades representam menos possibilidades de pessoas que eles podem recrutar para vender drogas.”
A gaúcha também teve de enfrentar a resistência de parte da população de dezenas de nacionalidades, que vivem sob uma forma de comunitarismo e preferem não se misturar.
Ela acredita que o fato de ser brasileira a ajudou quebrar o gelo com os moradores.
“Sou uma imigrante falando a outro imigrante”, diz a atriz, que muitas vezes saiu pelas ruas com a camiseta da seleção brasileira. “Os jovens se identificam. A conexão com eles é mais rápida.”
BOLETIM DA REDAÇÃO - 26/09/2025