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Graduada em direito e pós graduada em direito criminal e família, membro da academia de letras e artes de Goiás, tenho uma paixão pela escrita Acredito no poder das palavras para transformar realidades e conectar pessoas

Uma casa dentro de nós

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publicado em 11/11/2025 ás 07h00
atualizado em 11/11/2025 ás 08h06

Há uma casa dentro de nós que ninguém visita. Nela, o ar é espesso, o chão é feito de lembranças e as janelas dão para o abismo. É ali que moram as vozes que não ousamos ouvir: as que acusam, as que suplicam, as que mentem para consolar. Chamamos essa casa de alma — e é nela que se travam todas as guerras que fingimos vencer no mundo.

O inferno interior não arde: pesa. Não grita: silencia. É o peso daquilo que deixamos de ser para agradar, dos sonhos que guardamos por medo, das palavras que morrem na garganta para não ferir. É o acúmulo invisível das covardias elegantes.

O homem que desce às profundezas de si descobre um cenário de ruínas. Entre as paredes do orgulho e os escombros da fé, restam apenas fragmentos de esperança. Cada culpa é uma pedra, cada lembrança um altar quebrado. E ainda assim, o homem continua a arrumar essas ruínas, como se reconstruir o passado pudesse trazer paz ao presente.

A alma é um labirinto que o tempo não decifra. Há dias em que ela é templo, há dias em que é cemitério. Deus, quando nos visita, o faz disfarçado de silêncio. E o silêncio, por sua vez, fala mais alto do que qualquer prece.

O homem busca sentido onde deveria buscar leveza. Quer entender a dor, como se a dor tivesse lógica. Mas o sofrimento é um idioma que só o espírito entende. É a gramática do crescimento, escrita em lágrimas e cicatrizes.

Há dentro de cada um um juiz e um réu. O primeiro fala em nome de Deus; o segundo tenta se defender com lembranças. Ambos são mentirosos. O juiz se acha justo, o réu se acha vítima. E no fim, Deus — se ouve o julgamento — sorri, porque sabe que a verdade está além da razão.

O homem piedoso teme o inferno; o sábio o reconhece. Há mais pureza em quem confessa o erro do que em quem o esconde sob rezas. A santidade forjada é a pior das blasfêmias: usa o nome de Deus para ocultar a própria covardia. Deus perdoa o pecado; o fingimento, talvez não.

A alma não é santa nem pecadora. É apenas um espelho — reflete o que o mundo lhe mostra e o que ela ousa ver. Quem a olha com medo vê monstros; quem a encara com amor encontra luz. A diferença não está em Deus, mas no olhar.

A dor é o batismo dos lúcidos. Ninguém se torna inteiro sem antes se despedaçar. A alma que nunca sofreu é como um espelho limpo demais: reflete tudo, mas não guarda nada. A dor ensina o que a felicidade disfarça: que somos frágeis, falhos e, por isso mesmo, divinos.

O perdão é a arte dos que se reconciliam com a própria sombra. Não se trata de esquecer, mas de compreender. O erro, quando entendido, se torna oração. Há uma ternura em aceitar-se — uma santidade secreta no gesto de quem se abraça após a queda.

Dentro de nós há uma luz que o pecado não apaga. Ela não brilha para o mundo — brilha para dentro. É o farol que nos guia quando todos os dogmas desmoronam. É a lembrança de que o divino não habita o céu, mas o coração que se arrepende sem vergonha. O verdadeiro inferno é o exílio da alma de si mesma. É viver cercado de aplausos e morrer em silêncio. É não suportar o próprio reflexo e fingir que se é feliz. E o verdadeiro céu — ah, o céu — é o instante em que nos perdoamos por não sermos anjos.

Quem busca Deus fora de si, encontra apenas ídolos. Quem o busca dentro, descobre espelhos. E é neles que o divino se revela: não na perfeição, mas na consciência do imperfeito.

A alma não se salva — ela se compreende. E compreender é o primeiro passo da redenção. Porque só quem se enxerga nu diante da própria verdade pode enfim vestir-se de paz.

Do livro inédito Divina Hipocricia

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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