João Pessoa, 19 de novembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Final da Idade Média. Após um século de infortúnios, tais como epidemias de peste, guerras e depressão econômica, a Europa renasce. Vemos, então, uma súbita opulência nas letras e nas artes, o comércio ativo, as feiras nas vilas e cidades juntando gente, ativando a economia, permitindo o intercâmbio cultural. Uma barulheira medonha. Palavrões, blasfêmias, injúrias, em meio a berros, mugidos, zurros e grunhidos. Um apetite voraz em meio ao cheiro da comida rude dos pratos feitos, os PF de então.
Em toda parte ouvem-se pregões rimados, cantados, tais como ainda hoje vemos nas feiras nordestinas. Também a lábia convincente dos vendedores de remédios milagrosos, que curam tudo, desde erisipela até dor de dente, passando pelas enfermidades amorosas e pelas doenças espirituais.
Em algum lugar da feira, pendurados em cordões, os livretos que hoje chamamos de cordéis. O papel substituindo o couro de carneiro, como também a invenção da máquina impressora, tornara possível ao livro chegar à feira. São brochuras de baixo custo, em papel barato, que versam sobre diversos assuntos: receitas culinárias, medicina popular, orações, astrologia e dicas para afastar o Capeta. Alguns desses livretos contavam histórias de santos, de amores proibidos, de gigantes bonachões, de cavaleiros andantes espalhando justiça, de heróis guerreiros da cristandade, de anti-heróis trapalhões ou trapaceiros. Havia, também, nessas edições, espaço pra a licenciosidade, até mesmo para o que hoje qualificam como pornografia.
VOCÊ SABIA?
Que muitas das peças teatrais de Shakespeare foram inspiradas em histórias da literatura de cordel vendidas nas feiras medievais? ROMEU e JULIETA, por exemplo, é uma delas, que usa o motivo do amor proibido. A literatura de cordel nordestina é rica em textos com esse argumento.
Que a obra prima de Miguel de Cervantes, DOM QUIXOTE, foi inspirada nos cavaleiros andantes presentes em muitas histórias dos cordéis do final da Idade Média? Muitos folhetos nordestinos inspiram-se nesses cavaleiros que saíam pelo mundo salvando donzelas e protegendo os fracos. Alguns desses personagens foram importados da Europa. Outros foram nascidos aqui mesmo como vaqueiros e cangaceiros.
Que duas obras-primas da literatura mundial, GARGÂNTUA e PANTAGRUEL, escritas por Rabelais no século XVI, foram também inspiradas em livretos de cordel vendidos nas feiras? Muitos dos anti-heróis desses livros, trapalhões e trapaceiros, têm muita semelhança com velhos conhecidos nossos: Pedro Malazartes, João Grilo e Cancão de Fogo.
Que algumas das histórias do cordel medieval europeu foram reescritas para o cordel nordestino? Algumas delas: Princesa Magalona, Donzela Teodora, Roberto do Diabo, Imperatriz Porcina, Carlos Magno e os Doze Pares de França.
ORIGEM DO CORDEL NORDESTINO
Segundo a maioria dos estudiosos, o cordel nordestino provém do cordel europeu. Chegou até nós, ainda no século XVI, em forma de “folhas volantes”, páginas soltas, vendidas nas feiras de Portugal exclusivamente pelos cegos. Muitas vezes, essas folhas volantes, quando chegavam aqui, eram copiadas à mão, memorizadas e difundidas. Outras histórias foram compostas por artistas da terra, que as anotavam em cadernos e as repetiam em ocasiões especiais, como em cantorias.
Nas cantorias, depois dos desafios e pelejas acompanhados por viola ou rabeca, cabia ao vencedor contar histórias em versos.
Quando, no final do século XIX, as primeiras tipografias foram surgindo em cidades sertanejas, muitas dessas histórias em versos foram sendo publicadas em folhetos, sendo comercializadas em grande quantidade ( Não eram raros os cordéis que chegavam a vender 100 mil exemplares).
Destaque, nesse mister, pra Leandro Gomes de Barros, o maior escritor de cordel de todos os tempos, que, além de escrever, publicava os seus folhetos e, através de uma rede de agentes,os difundia em todo o Nordeste e até em estados da região Amazônica.
Esses cordéis que surgiam a partir daí já estavam completamente adaptados ao clima, ao sentimento e à mentalidade nordestina. E ganharam personagens nossos, produtos de nossa sociedade patriarcal, da nossa mística messiânica, do cangaço, do nosso conceito de honra, da pecuária extensiva, que era a base da nossa economia de então.
CANTORIAS
Como vimos, o cordel nordestino tem muito a ver com as cantorias que aconteciam, e ainda acontecem em ocasiões especiais. As cantorias são espetáculos apresentados em fazendas, povoados, vilas e cidades e que existem há séculos, sobrevivendo até hoje. Elas se constituem de dois momentos: o da apresentação de uma história contada em versos e o do desafio, em que dois contendores, acompanhados de viola ou rabeca, pelejam sobre temas propostos na ocasião, cada um buscando vencer o outro.
A métrica e o sistema de rimas das cantorias e pelejas são os mesmos da literatura de cordel, mas podem surgir, para complicar, no caso da peleja, outras métricas e, até mesmo, jogos de palavras, como trava-línguas.
Muitos folhetos de cordel foram histórias contadas em versos nas cantorias. E muitas cantorias, decoradas por espectadores de memória prodigiosa, foram transformadas em folhetos de cordel.
Algumas pelejas de cantorias terminavam em paz, com um dos contendores confessando sua incapacidade para continuar a peleja. Outras, no passado, terminavam em pancadaria, como aquela entre Manoel Caetano e Manoel Cabeceira, por ocasião de um casamento, citada por Márcia Abreu no seu livro Histórias de Cordéis e Folhetos:
CABECEIRA
Quando eu vim lá de cima
Que passei em Mato Grosso,
Deixei tua mãe parida
Com um chocalho no pescoço,
Olhe, não bula comigo,
Senão o barulho é grosso.
CAETANO
Nas profundas do inferno
Tem uma caldeira fervendo,
Com tua mãe de uma banda,
Com uma colher mexendo
E os diabos todos do inferno
Nas suas costelas comendo.
PERSONAGENS
O cordel nordestino herdou muitos personagens do cordel europeu: reis, princesas, condes, duques e diabos de toda espécie. Da Europa, herdou também figuras endiabradas como Pedro Malazartes e João Grilo.
Depois foram surgindo personagens nativos: cangaceiros, beatos, agricultores pobres, fazendeiros cruéis, mocinhas apaixonadas, almocreves, vaqueiros, animais espertos…
Personagem mui importante, surgido entrenós, foi o boi, que em muitos folhetos torna-se um narrador que vê o mundo sob o seu ponto de vista e sob os seus sentimentos.
Outros personagens são grandes figuras da vida real, como Padre Cícero,Getúlio Vargas, Antônio Conselheiro e Lampião, que foram enaltecidos e biografados em centenas de títulos de larga aceitação popular. Outros heróis populares que, no momento de alguma catástrofe real, salvaram vidas, ou personagens de fatos históricos vividos na época em que os folhetos forma escritos, ou até vilões de crimes que chocaram a opinião púbica.
Os cordéis nordestinos ainda são, às vezes, visitados por habitantes do plano espiritual, como São Pedro, São Francisco e Santo Antônio. Tem ocasião que até mesmo Jesus Cristo se dispõe a dar uma passadinha nas nossas caatingas ensolaradas e ermas.
Almas penadas, aqui e acolá, aparecem, como também personagens de livros famosos como As mil e uma noites, Decamerão e o Mártir do Gólgota, que ganham a nossa linguagem, o nosso espírito e a nossa ecologia equatorial.
TEMÁTICA
Sabe-se que já foram publicados, no Nordeste, mais de 14 mil títulos de cordéis. Existem diversas classificações para todo esse material. Para uma melhor compreensão no contexto desta cartilha, vamos nos basear na classificação de Manuel Diegues Júnior.
Temas tradicionais.
Agrupamos aqui os romances de amor, os contos maravilhosos, estórias de animais, as diabruras e peripécias de anti-heróis, as histórias exemplares de santos e outros folhetos de inspiração religiosa.
Fatos circunstanciais.
Os folhetos desse grupo já supriram, no passado, a falta de jornais e noticiários de tv, informando aos sertanejos sobre os acontecidos pelo país, pelo mundo e até em outras localidades sertanejas. Entram, aí, os folhetos sobre guerras, crimes chocantes, enchentes, secas e outras calamidades. Como também, folhetos de sátira política e de louvação a personagens reais.
Cantorias e pelejas.
Folhetos contendo a reprodução de duelos, ao som da rabeca ou da viola ou do pandeiros, onde não era permitido titubear na métrica e na rima.
IMAGENS RECORRENTES
Existem imagens primordiais comuns à toda a humanidade, encontradas em diversas culturas humanas e adaptadas a estas, no que diz respeito à religião e à ideologia dominante. Algumas dessas imagens são recorrentes na literatura de cordel, principalmente naqueles folhetos ditos maravilhosos. Algumas delas:
O amor impossível que se realiza. Existem centenas, talvez mais de mil obras de cordel que fazem uso dessa imagem, quase sempre tendo como título o nome dos amantes.
O mal ludibriado. O diabo oferece um grande favor em troca da alma de alguém. Esse alguém aceita a proposta e, no fim, passa a perna no diabo, aprontando-lhe alguma.
O pecado voltando-se contra o pecador. É quando os caluniadores invejosos, depois de causarem dores lancinantes em suas vítimas, acabam recebendo um castigo cruel. Nos folhetos que utilizam essas imagens, sempre existe também algum castigo pra luxuriosos, irados, orgulhosos, preguiçosos, avarentos e gulosos.
O pobre que fica bem graças a uma boa ação. Por exemplo, um alguém deu comida a um mendigo e este era Nosso Senhor disfarçado. Ou, então, atendeu com rezas a uma alma penada e esta, em agradecimento, forneceu-lhe a localização de uma botija.
O resgate de lindas donzelas prisioneiras. Sempre, no final, a linda donzela acaba casando com o seu salvador, quase sempre, um rapaz pobre de bons princípios.
A esperteza derrotando a prepotência. Esse é território de Pedro Malazartes, João Grilo e Cancão de Fogo, anti-heróis irresponsáveis e alegres.
ARGUMENTOS
Temos, abaixo, os argumentos resumidos de alguns folhetos de cordel que ficaram célebres. Observem suas temáticas e as imagens a que eles recorrem.
O CACHORRO DOS MORTOS
De Leandro Gomes de Barros. Conta a história de um cachorro que consegue denunciar o pérfido assassino de uma família inteira, desfazendo a trama de um crime aparentemente perfeito.
O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO
De Leandro Gomes de Barros. Conta a história de um pobre camponês que fica rico enganando um duque ganancioso, vendendo-lhe um cavalo velho e doente, alegando que o dito defecava, toda manha, uma porção de moedas de ouro.
HISTÓRIA DO VALENTE VILELA
De João Martins de Athayde. É a vida de um jovem brigão que, no século XIX, residia nas fazendas de gado do Nordeste. Autor de mais de 100 mortes, Vilela depois se arrepende. Quando morreu, já bem velhinho, é tido como santo.
O PRÍNCIPE DO BARRO BRANCO
De Severino Milanês. Um rapaz órfão e pobre, que não conta com mais ninguém, decide viajar pelo mundo. Nas suas andanças recebe, de um velho, um cavalo misterioso e três pães. Com esses presentes consegue a proteção de três animais mágicos, que o ajudam a escapar de perigos e a libertar uma princesa encantada, com quem ele se casa.
HISTÓRIA DE MARIQUINHA E JOSÉ DE SOUSA LEÃO
Conta a saga de um almocreve (vendedor ambulante) cearense que, devido, a uma seca, emigra pra Pernambuco, onde vive uma paixão proibida com a filha do senhor do engenho onde passou a viver. A força do amor e a valentia do rapaz e da moça acabam vencendo. E os dois se casam.
O PAVÃO MISTERIOSO
De José Camelo de Melo Rezende. Conta a aventura de um filho de comerciante na Turquia, que, esbarrando na Grécia, apaixona-se pela filha de um conde que a mantinha prisioneira. Mandando fabricar um pavão mecânico, o herói da história liberta a mocinha que estava enclausurada em uma torre. E se casa com ela.
A LOUCA DO JARDIM
De Caetano Cosme da Silva. Uma linda e virtuosa mulher casada é caluniada por um sedutor frustrado. Devido a isso, torna-se a Louca do Jardim. Muitos anos depois, quando o engodo é descoberto, retorna sua vida com ao marido e a filha. E o caluniador tem um fim terrível. Este cordel foi muito encenado em dramas de circo.
PROEZAS DE JOÃO GRILO
De João Martins Athayde. Nesse cordel, contam-se as façanhas do endiabrado João Grilo, que com sua inteligência e esperteza virava o mundo de cabeça para baixo.
HISTÓRIA DO BOI MISTERIOSO
De Leandro Gomes de Barros. Conta a história de um boi lendário, nascido nos sertões do Quixelô, Ceará, na seca de 1825, numa espécie de nascimento mágico. Jamais houve vaqueiro, por melhor que fosse, que conseguisse pegar esse boi.
JOÃO SOLDADO
De Antônio Teodoro dos Santos. Conta a história de um praça muito valente que, através de artimanhas engenhosas, consegue meter o diabo dentro de um saco.
A CHEGADA DE LAMPIÃO NO INFERNO
De José Pacheco. Trata do dia em que Lampião, recém-falecido, provoca o maior salseiro no inferno, queimando um monte de diabos e todo o dinheiro que Satanás havia acumulado.
A GUERRA DO JUAZEIRO DE 1914
De João do Cristo Rei. Narrativa de um fato histórico, que foi o levante do Juazeiro do Padre Cícero contra o governo liberal cearense, chefiado por Franco Rabelo.
OS CABRAS DE LAMPIÃO
De Manoel de Almeida Filho. Conta episódios vividos pelo bando do último grande cangaceiro desde a entrada deste no cangaço até a sua morte, ocorrida em 1938. O autor também relata as façanhas de outros membros do bando.
HISTÓRIA DE JOSÉ DO EGITO
De João Martins de Athayde. Conta a história de um personagem bíblico que foi vendido como escravo pelos irmãos e que um dia vira um poderoso ministro do faraó do Egito.
PELEJA DE CEGO ADERALDO COM ZÉ PRETINHO DO TUCUM
De Firmino Teixeira do Amaral. Relata uma célebre peleja de cantadores, acontecida no Piauí, quando Cego Aderaldo desbanca a fama do seu antagonista, Zé Pretinho.
O GÊNERO
Embora utilize elementos dos gêneros poético e dramático, o cordel pertence ao gênero narrativo, sendo, portanto, irmão do romance e do conto, e descendente das epopéias, das gestas e das sagas do tempo antigo. Podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que nas veias do cordel corre o sangue de Homero.
TIPOGRAFIAS E EDITORAS
No começo, os autores de cordel, como Leandro Gomes de Barros, iam editando seus folhetos nas tipografias que iam aparecendo pelo sertão. Depois surgiu a Livraria Pedro Batista, dos irmãos Pedro e Chagas Batista, em Guarabira, Paraíba, que passou a editar folhetos. Ainda nessa época, com o ciclo da borracha, com muitos nordestinos migrando pra a Amazônia, a Editora Guajarina, de Belém do Pará, passou também a editar folhetos de literatura de cordel.
A partir dos anos de 1920, a Tipografia João José da Silva, em Recife, e A Estrella da Poesia, em Campina Grande, implantam-se no mercado. Em São Paulo, a editora Prelúdio, tendo em vista o grande número de nordestinos existentes na cidade, também passou a editar cordéis.
Nesse tempo, mais precisamente em 1921, João Martins de Athayde comprou a propriedade literária de Leandro Gomes de Barros e, logo em seguida, de tantos outros autores, tornado-se um grande editor de folhetos de literatura de cordel. Em torno de 1949, ele vendeu toda essa propriedade, incluindo folhetos de sua autoria, para a Tipografia São Francisco, de José Bernardo da Silva, localizada em Juazeiro do Norte.
Quando faleceu, em 1972, as filhas de José Bernardo mudaram o nome da editora para Tipografia José Bernardo da Silva. Em 1983, foi vendida para o Governo do Ceará e tornou-se a Lira Nordestina, mas longe estavam os tempos de glória de Leandro, Athayde e Zé Bernardo.
Vale salientar a existência em Fortaleza, nos anos das décadas de 1960 e 1970, da editora e tipografia Graças Fátima, de Joaquim Batista de Sena, e, nas décadas de 1970 e 1980, da Casa dos Meninos de Olinda, que também publicavam folhetos.
Atualmente, como editoras de cordel, temos, no Recife, a Coqueiro, de propriedade do jornalista Ivan Maurício; em São Paulo, a Luzeiro, herdeira da Prelúdio; Em Fortaleza, a C. Cordel, dirigida por Guaipuan Vieira e Pardal, como também a Tupynamquim, comandada pelo escritor e artista gráfico Klévisson Viana, com mais de 320 títulos publicados.
No Cariri, a velha Lira Nordestina, renascida com o projeto SESCordel, do SESC-CE, que visa publicar a produção literária de novos cordelistas, já publicou, nos últimos cinco anos, em torno de 100 folhetos de novos escritores, na base de 4 por bimestre, contemplando grupos organizados de poetas, como os “Mauditos”.
O FOLHETO
O folheto de cordel é um livreto de impressão simples e artesanal. Por conveniência gráfica, pode ter 8, 16, 24, 32 e até 64 páginas, conforme o número de estrofes da história contada (uma média de 5 estrofes por páginas, tirante a primeira, que deve dar espaço para o título e nome do autor).
Observação curiosa: esses folhetos nunca formam chamados de cordéis no Nordeste, nem pelos escritores, nem pelos agentes distribuidores, nem pelos vendedores, nem pelo público consumidor. Eram chamados de “rumanços” ou “rumances”, quando eram mais volumosos, e “versos”, quando mais fininhos.
O termo cordel é acadêmico, inspirado na maneira como esses livretos eram expostos na feira medieval, pendurados em cordões. Nas feiras nordestinas são expostos, via de regra, sobre lonas. Em bancas de revistas, atualmente, os vemos em expositores de plástico apropriados para tal, ao lado de jornais, folhetos de palavras cruzadas e revistas de mulher nua.
ILUSTRAÇÃO DE CAPA DOS FOLHETOS
No começo, os folhetos vinham sem ilustração nas capas (capas cegas). Posteriormente vieram algumas técnicas com o afã de ilustrá-las e atrair mais ainda o público comprador. Vieram, então, as zincogravuras reproduzindo desenhos, retratos de artistas de cinema e de cartões postais. E as xilogravuras, feitas com um clichê de madeira que, segundo vários estudiosos, eram mais apreciadas pelos leitores cultos.
XILOGRAVURA
Segundo Jeová Franklin de Queiroz, a xilogravura é a mais importante técnica gráfica para representar os valores, as crenças e a mentalidade sertaneja. Por conta desse caráter, está irmanada culturalmente com a literatura de cordel, embora já desponte como uma parte paralela, independente, que segue seus próprios caminhos e que se impõe por si própria, tanto que hoje se tornou um produto urbano, presente na decoração de residências de classe média.
A imagem da xilogravura é talhada em madeira com qualquer instrumento cortante, de fio afiado, com o qual o artista vai abrindo sulcos para representar anjos e demônios, vaqueiros, bichos diversos e outros personagens que habitam os folhetos de cordel.
Várias madeiras servem para essa arte, contanto que o taco seja plano e liso, de modo a permitir o desenho prévio da imagem, como também para facilitar a impressão no papel.
Sobre a origem da nossa xilogravura, podemos remontar a técnicas milenares chinesas, como também relações próximas com a idade média européia. O professor Gilmar de Carvalho, um dos mais celebrados estudiosos do assunto, afirma que: “O Nordeste brasileiro, com a xilogravura, expressa uma concepção medieval do mundo…”
CORDEL E TEATRO
Muito do teatro brasileiro é cordel, pois muitos autores se inspiram diretamente nos argumentos dos folhetos para escrever suas peças, como no caso de um dos clássicos de dramaturgia brasileira, AUTO DA COMPADECIDA, de Ariano Suassuna, que inspirado em três cordéis: O enterro da cachorra, O cavalo que defecava dinheiro e O castigo da cobiça.
Outros autores lançam mão das imagens que as histórias dos cordéis evocam. Aí vêm os anacronismos, a supressão do espaço e do tempo, a magia criando situações absurdas que, de tão inverossímeis, tornam-se verossímeis, dando uma estranheza agradável ao que é apresentado ao público.
CORDEL E LITERATURA
Existem estudiosos que enxergam um parentesco entre a literatura de cordel e escritores latino-americanos que enveredam pelo realismo fantástico. É possível, também, dizer que grandes autores brasileiros, como Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto e Jorge Amado, tiveram influências da literatura de cordel.
ORALIDADE
Quando o cordel surgiu na Europa, a grande maioria das pessoas era analfabeta. Por isso, o cordel já nasceu vocacionado para a oralidade. Alguns poucos que sabiam ler, liam para muitos que não sabiam. Isso fez com que os autores desses folhetos cuidassem para que as palavras fluíssem sonoras, que evocassem imagens e que fossem assimiladas sem atropelos e sem grandes exercícios cerebrais.
No Nordeste, onde poucos também sabiam ler, o cordel manteve essa oralidade primordial. Prova disso é que os varejistas de folhetos de cordel, nas feiras nordestinas, até hoje ainda cantam ou recitam o cordel que estão vendendo, de modo a despertar, nos que passam por perto, o interesse pela obra.
Reforçando esse caráter oral, o cordel nordestino criou uma norma para facilitar a memorização, expressa na rima, na métrica e na organização das estrofes.
VERSOS, ESTROFES E RIMAS
O cordel medieval europeu era escrito em prosa e em verso. No Nordeste, a vertente verso foi, e, é avassaladoramente predominante. A imensa maioria das histórias é contada em versos de sete sílabas poéticas, bem assimilados pela população.
As sílabas poéticas são contadas até a última tônica do verso e leva em conta as elisões que podem acontecer, que formam uma única sílaba.
A bem do ritmo e da memorização, na sua maioria os folhetos são organizados em estrofes que podem ter quatro, seis ou sete versos.
As estrofes de quatro versos foram mais usadas no passado. Como exemplo, vejamos uma estrofe em quadra (quatro versos) do clássico O RABICHO DA GERALDA, versos já existentes, segundo Câmara Cascudo, em 1972.
“Antes que de lá saísse
amolou o seu ferrão;
onde encontrar o Rabicho
dum tope o boto no chão”
A partir do século XX, houve o predomínio das estrofes de seis ou sete versos. Nas estrofes de seis versos, a rima, como recurso para consolidar o ritmo e facilitar a memorização, aparecer no segundo, no quarto e no sexto versos, que rimam entre si. Como exemplo, vejamos duas estrofes de seis versos cada, do folheto História da Donzela Teodora, escrito por Leandro Gomes de Barros, baseado em um argumento que vem do século XIII.
“Andando uma dia na praça
numa porta pôde ver (RIMA)
uma donzela cristã
ali para se vender (RIMA)
o mercador vendo aquilo
não pôde mais se conter (RIMA)
Tinha feições de fidalga
era uma espanhola bela (RIMA)
ele perguntou ao mouro
quanto queria por ela (RIMA)
entraram então em negócio
negociaram a donzela (RIMA)
Nas estrofes de sete versos, o segundo, o quarto e o sétimo versos rimam entre si. E vemos outra rima entre o quinto e o sexto versos. Vejamos um exemplo em uma das estrofes de sete versos do folheto O Boi Mandingueiro e o Cavalo Misterioso, de Luiz da Costa Pinheiro.
O cavalo misterioso
quem trata dele sou eu (RIMA 1)
o homem que montar ele
pode dizer que morreu (RIMA 1)
outro não pode existir (RIMA 2)
besta não há de parir (RIMA 2)
cavalo bom como o meu (RIMA 1)
O BOM FOLHETO
Segundo o escritor de cordel Manoel de Almeida Filho, o bom folheto é o de qualquer classe quando bem rimado, bem metrificado e bem orado. Bem orado significa que seja coerente, que desenvolva sua ação em cima de um eixo central de causas e efeitos, que tenha muitos episódios em um roteiro desembaraçado. E que esses episódios não sejam complicados.
Em resumo, não basta ao bom folheto ser bem rimado e metrificado. Para o bem da compreensão do leitor, ele não deve ter muitos personagens e nem tramas paralelas que embolem o meio de campo.
PERFIL DO ESCRITOR DE CORDEL DO PASSADO
Analisando a biografia de muitos escritores de folhetos, vemos alguns pontos em comum entre eles. São muito apegados às tradições e isso se reflete nos textos que eles escrevem, com heróis valentes, bons filhos, leais, fiéis à palavra dada e generosos com os fracos. Além disso, esses escritores, sempre que podem, estão satirizando as inovações tecnológicas, as modas e as mudanças sociais.
O escritor de cordel do passado, politicamente, era um conservador que sempre estava do lado do governo. Uma exceção é o próprio Leandro Gomes de Barros, um rebelde contumaz, sempre em rusgas com os poderosos. Outra exceção mais recente é Patativa do Assaré, que embora fosse um grande amigo das tradições, politicamente era um contestador, sempre denunciando as injustiças sociais e clamando por uma sociedade mais igualitária.
Cordelistas do passado, em boa parte, resumiam suas leituras ao que interessava aos folhetos que escreviam, mas existiam alguns, como João Martins de Athayde, Rodolfo Cavalcante e o próprio Leandro Gomes de Barros, que faziam suas incursões ao mundo dito erudito.
O que era comum a todos eles era a leitura de almanaques, como o Lunário Perpétuo, editado em Portugal desde o final do século XV, tratando de agricultura, de medicina popular e astrologia. Em virtude disso, muitos desses escritores também passaram a editar seus próprios almanaques e a fazer horóscopos.
ALGUNS AUTORES CLÁSSICOS DE FOLHETOS
Leandro Gomes de Barros (1865 – 1918) – Segundo muitos estudiosos, foi o primeiro a publicar histórias versadas no Brasil, por volta de 1889, quando residia no Recife. Sua produção total é estimada em aproximadamente mil títulos. Alguns dos seus títulos, fora os já citados nesta cartilha: Cancão de Fogo, Juvenal e o Dragão, Batalha de Oliveiros com Ferrabás, A História da Princesa da Pedra Fina, João da Cruz, O soldado jogador…
Francisco das Chagas Batista (1882 – 1930) – Paraibano, proprietário da Livraria Popular Editora, em João Pessoa. Escrevia mais sobre cangaceiros. São de sua autoria: Antônio Silvino, vida, crimes e julgamento; A História do Capitão Lampeão.
Firmino Teixeira do Amaral (1886 – 1926) – Piauiense, trabalhou na Editora Guajarina, em Belém do Pará, onde editava os seus folhetos. Gostava de contar histórias de pelejas e desafios. O seu folheto mais famoso é: Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum.
José Pacheco (1890 – 1954) – Era um mestre do gracejo, autor do famoso A chegada de Lampião no inferno. Além desse folheto célebre, escreveu outros títulos famosos como: A intriga do Cachorro com o Gato; A propaganda do matuto com um balaio de maxixe; A festa dos cachorros.
João Martins de Athayde (1880 – 1959) – Além de autor, destacou-se como editor de folhetos, pois em 1920 adquiriu grande parte da propriedade literária de Leandro Gomes de Barros, passando a editá-la e distribuí-la por todo o Nordeste, juntamente com textos de suas autoria e de outros autores. Era doido por cinema, de onde tirava o argumento para muitos dos seus cordéis. São de sua autoria: O Homem que nasceu para não ter nada; Meia Noite no cabaré; História da Imperatriz Porcina…
João Cristo Rei – Nascido com o nome de João Quirino Sobrinho. Trocou de nome devido a uma promessa que fez ao Cristo Redentor. Residiu grande parte da sua vida em Juazeiro do Norte, Ceará. É autor que explora bastante temas religiosos. Escreveu, entre tantos folhetos: Como foi o Nascimento do Padre Cícero Romão; Os Verdadeiros Milagres do Padre Cícero Romão.
José Camelo de Melo Rezende (Falecido em 1964) – Foi autor do famoso Romance do pavão misterioso e de outros clássicos da literatura popular em versos, como: Entre o amor e a espada; O monstro do rio negro; A verdadeira história de Joãozinho e Mariquinha.
Joaquim Batista de Sena – Foi cantador na década de 30 e editor de folhetos na Paraíba. Passando pelo Rio de Janeiro, transferiu-se depois para Fortaleza, onde se dedicou, exclusivamente, a vender folhetos. São de sua autoria: O Bárbaro assassinato de Manoel Machado; Elias e Antonieta ou a Pequenina cruz do teu rosário; Estória do rei teimoso.
José Bernardo da Silva (1911 – 1972) –Foi o maior editor de folhetos de literatura de cordel de todo Brasil. Em torno de 1949, comprou a propriedade literária de João Martins de Athayde, que incluía a obra de Leandro Gomes de Barros e de outros autores. Foi proprietário da famosa Tipografia São Francisco, em Juazeiro do Norte, que depois de sua morte tornou-se a Lira Nordestina. Entre os folhetos de sua autoria, citamos: O Cruzeiro do Horto; A morte de Lampião e seus companheiros; A quebradeira e o choro de 47.
PERFIL DO ESCRITOR DE CORDEL HOJE
Muitos jovens cordelistas surgiram a partir dos anos 90, na medida em que a literatura de cordel foi ganhando o interesse das universidades e do público culto em geral. Vemos, então, um fato inusitado, que é a retomada de uma situação existente no tempo em que o cordel nascia no chão da feira, quando não havia a distinção entre a cultura popular e a chamada erudita.
Cordelistas de hoje, na sua maioria, transitam entre o mundo erudito e o popular, desfazendo um fosso estabelecido no passado. Cultuam Homero tanto quanto cultuam Leandro Gomes de Barros e tratam de temas antes interditos. Uma novidade: boa parte de cordelistas de agora são mulheres, como Sebastiana Gomes de Almeida Job (Bastinha), Salete Maria da Silva, Isaura de Melo, July Ane Silva, Maria Luciene. Isso era algo impensável no passado.
Se nos versos dos cordelistas de hoje, muitas vezes falta a espontaneidade dos vates menos letrados de antanho, muito se tem avançado nesse sentido, afinal estamos no começo de uma velha história que sempre começa de novo. E o mundo, nem de longe, é mais o mesmo dos tempos heróicos dos velhos cordelistas.
Inspirados, contestadores e inventivos, os novos cordelistas devem ser observados não do ponto de vista do passado, mas à luz de um mundo que se transforma, que ganha a cada dia novos personagens e novas tramas, mantendo porém o primordial da natureza humana.
Só com essa observação a literatura de cordel, esse mundo colorido reinventado no nordeste brasileiro, não se transformará na cidade petrificada dos velhos contos maravilhosos. Será uma cidade viva, com seus conflitos e transformações, com um lugar no futuro.
AUTORES DE HOJE
Klévisson Viana (também editor de folhetos, proprietário da Tupynanquim), Arievaldo Viana, Rouxinol do Rinaré, Pedro Paulo Paulino, Luiz Eduardo Serra, Gonzaga de Canindé, Antônio Queiroz de França, Zé Maria de Fortaleza, Jesus Rodrigues Sindeaux, Francisco Leite Quental, Gilvandias, Guaipuan Vieira, Pedro Costa, Paulo de Tarço, Otávio Meneses, Jotabê.
Além desses, que atuam em Fortaleza e região metropolitana, o Cariri experimenta um verdadeiro renascimento da literatura de cordel, com “Os Malditos”, escritores de folhetos que atuam nas trincheiras das lutas sociais e nas batalhas contra preconceitos de várias ordens. “Os Malditos” atualizam as temáticas, colocando o cordel no cotidiano da modernidade.
Todo esse pessoal, que hoje desbrava o futuro, tem uma ponte com o passado, através de cordelistas veteranos que continuam dando conta do recado, como Mestre Azulão, Antônio Américo de Medeiros, Antônio Alves, José Costa Leite, Elias de Carvalho, Manuel Monteiro, Abraão Batista, Gonçalo Ferreira da Silva e Vidal Santos.
PARA AUMENTAR O CONHECIMENTO
ANTOLOGIA DALITERATURA DE CORDEL, editada em Fortaleza pelo Banco do Nordeste do Brasil, 1994. Com organização do estudioso Ribamar Lopes, esse grande trabalho conta com uma antologia de folhetos primorosos, com dados biográficos dos autores, com elementos da história de cordel e com ensaios de pesquisadores sobre o assunto.
ANTOLOGIA DA LITERATURA DE CORDEL, editada em Fortaleza, pela Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social do Estado do Ceará, em 1978. Também uma antologia de folhetos primorosos, com dados biográficos de autores e prefácio de F. S. Nascimento.
VAQUEIROS E CANTADORES, de Câmara Cascudo, editado no Rio de Janeiro pela Ediouro. Trabalho maravilhoso, que, além de abordar a literatura de cordel, faz uma viagem fantástica por muitos aspectos da cultura popular nordestina. Fala de cantoria, de ABC, de testamento de Judas…
HISTÓRIAS DE CORDÉIS E FOLHETOS, de Márcia Abreu, editado em Campinas, SP, pelo Mercado de Letras, 1999. Esse livro, além de abordar profundamente aspectos importantes dos folhetos de cordel, faz um comparativo entre o cordel português com o cordel nordestino.
XILOGRAVURAS – DOZE ESCRITOS NA MADEIRA – De Gilmar de Carvalho. Editado pelo Museu do Ceará / Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001. Um apanhado das pesquisas e das viagens do autor, tendo em vista a ampliação do conhecimento sobre xilogravura.
Além dessas sugestões, existe uma ampla bibliografia sobre o assunto, em livrarias e bibliotecas. Para aumentar mais o conhecimento, sugiro a leitura de folhetos, que são encontrados em algumas bancas de revistas, em locais destinados à venda exclusiva, em mercados e feiras.
* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB
HORA H NA TV MANAÍRA - 10/12/2024