João Pessoa, 18 de setembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Mesa de bar é poesia.
“Quem não vive para servir não serve para viver”.
Eis um aforisma de cariz filosófico, colhido, ao acaso, numa mesa de bar. A propósito, a mesa de bar possui qualquer coisa de pedagógico. Claro, sem os limites institucionais de uma sala de aula. Ouve-se tanta coisa, aprende-se tanta coisa, numa mesa de bar. Além do que, a mesa de bar se deixa habitar pelos demônios do devaneio e pelos fantasmas da fantasia.
“Comprei contrafilé, a mulher dava ao gato. Gritei: mulher, bota um pouco de ração pra mim. Não bati nela, porque não bato em mulher. Mas meus nervos ferveram”.
O sujeito que me disse isto mostrava sua indignidade. Onde já se viu, acentuava, tratar melhor o gato que o marido. É, amigo, quis dizer a ele, mas calei… Comigo mesmo refleti: já estamos vivendo os primeiros sinais da sociedade dita pós-humana. Aqui, neste tipo de sociedade, o ser humano conta muito pouco como valor, a não ser apenas na escala produtiva. O gato vale mais, o cachorro vale mais, o carro vale mais, o celular vale mais, a fama vale mais, a inteligência artificial vale mais etc. etc.
“Moro aqui há trinta anos, minha vida foi só pescar. Quando tô no mar, vejo milhões de coisas diferentes”.
Ah! O mar. Quantas emoções em prosa e verso. O mar aberto e quase infinito… As ondas, as pedras, os peixes, as espumas, a calmaria da preamar. As mesmas areias numa passagem de sempre. Corais e arrecifes, arrecifes e lajedos.
“Meu nome é Gabriela. Não gosto de macho, a não ser como amigo. Gosto de mulher. Se for nova e com lábios pequenos. Sou ciumenta, possesiva, mas dou o que não tenho para mimar minha namorada”.
O que não faz o amor! Esse amor que, segundo a terça rima de Dante, move o sol e as outras estrelas. O amor que é, conforme Camões, “um fogo que arde sem ver ∕ … ferida que dói e não se sente”, ou, aquele amor dos versos de Drummond: “o amor, seja como for, ∕ é amor {…} Amor é bicho instruído”.
“Fosse prefeito dessa merda, limparia as praias, ajudaria os pescadores. Botava para navegar os escapulários do meu sonho”.
Ótimo este “escapulários do meu sonho”. Parece uma metáfora de Jorge de Lima, o Jorge dos sonetos e de Invenção de Orfeu, na sua intensa capacidade de criar imagens radicais no dorso das palavras.
“Zezinho, qual o preço do atum branco? Prefiro cavala, meca, cioba. Do xarel, peixe de segunda, aprecio a cabeça. Dá uma sopa daquelas. Ontem meu barco quebrou. Estava em alto mar. Você sabe o que é isso? Me vi sozinho entre o nada e a solidão do cosmos”. “
Fala de teor poético vinda da boca de mais um pescador anônimo. “A solidão dos cosmos”! Tem razão Manuel Bandeira, ao afirmar que a poesia está em tudo. Sobretudo, se as coisas e fenômenos que compõem esse tudo deixam-se tocar pela magia criadora dos vocábulos.
“Meu Jesus é todo poderoso. Sem ele, somos nada. Deus vela por mim”.
Jesus, Deus, sempre na voz de todos. Uma senha milagrosa que a todos protege e conforta. A fé, na sua bruta e indomável irracionalidade.
“Não bebo, doutor, mas lhe prometo um pescado de primeira. Se quiser me acompanhar ao oceano, se despeça de tudo. O mar é uma viagem sem volta”.
Fiquei matutando no final da frase. Por que seria o mar uma viagem sem volta? O que quis me dizer de concreto aquele pescador? Dos que proseavam comigo, parecia ser o mais simples, o mais humilde, o mais forte. Ouvia em silêncio as histórias dos outros. Quase não brincava. Não disse um palavrão.
Mesa de bar é poesia!
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