João Pessoa, 24 de julho de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Não é somente o olhar poético para os acontecimentos do cotidiano, a percepção comovida em torno dos fenômenos “ao rés do chão”, a capacidade de extrair daquilo que é efêmero e banal um traço qualquer do essencial e do duradouro, que se exige para o ofício do cronista.
Há que se pensar na propriedade de um estilo que possa garantir o estatuto estético ao gênero, de natureza híbrida, advindo das relações possíveis entre literatura e jornalismo.
Ao cronista, como ao articulista de variedades, interessa a vida do dia a dia e seus derivados, observada, pensada e refletida, sobretudo, pelo toque sutil de uma subjetividade comprometida com o singular, ou, dito de outra forma, com aquilo que se formula na sua irredutível distinção, particularidade e diferença.
Mas, se no articulista, inteirado mais dos fatos, das coisas e das pessoas, pela via do comentário crítico, distanciado por assim dizer da matéria abordada, no cronista, a seu turno, já mais para o literário do que para o jornalístico, é a possibilidade da apreensão poética que rege a organização das palavras no discurso. Aqui, ao olhar especial de uma sensibilidade estética devem corresponder, em rigorosa simetria, o composto verbal, uma configuração estilística.
Ocorrem-me tais ponderações ao ler Quadro crônico, de Lucas Arroxelas (São Paulo: Penalux, 2023), coletânea de textos que oscilam precisamente entre o viés conceitualista do artigo e as matrizes poéticas e sensíveis da crônica.
Dividido em quatro partes (“Geografias líricas”, “De coroas e chinelos”, “Pulsações” e “Diante do espelho”), o “quadro” de textos se distende por diversas motivações que solicitam a atenção do autor e movem tematicamente seus interesses e perplexidades.
Lugares, criaturas, sentimentos e, em especial, o universo da própria crônica associado a tópicas literárias, a exemplo dos livros, dos sebos, das dedicatórias, entre outras, como que compõem os fios de conteúdo dessa curiosa coletânea.
Chama-me a atenção, principalmente se me volto para as entrelinhas da escrita de Lucas Arroxelas, a presença do leitor, a filtrar suas experiências pela mediação livresca, pelo contato com obras e autores com os quais estabelece sugestivos diálogos e com os quais parece fundar os alicerces expressivos e motivacionais de seus temas e assuntos.
Por exemplo, Em “Ai de ti, Recife”, evoca Rubem Braga; em “Um rio, uma ponte e sua gente”, convoca João Cabral de Melo Neto; Em “Para ler João Pessoa”, lembra Gonzaga Rodrigues, e “Em “É Minas”, traz à tona o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
Se refiro estas amostras, todas integrantes da primeira seção do volume, isto é, aquela que tem, na paisagem geográfica, seu núcleo e sua dinâmica, poderia também citar outros recortes discursivos da mesma natureza, característicos das divisões posteriores.
E, aqui, não esquecer os nomes de um Ledo Ivo, de um Paulo Mendes Campos, de um Gregório de Matos, de um Câmara Cascudo, de um Vinícius de Moraes, de um Antônio Maria, de um Augusto dos Anjos e de um Ruy Castro, entre outros, que subjazem à organização sintática e semântica da palavra neste Quadro crônico.
Toca-me, sobremaneira, o conjunto das peças, em “Diante do espelho”. Em postura metalinguística, e ora transitando entre a reflexão crítica peculiar ao artigo e a pulsação estilística da crônica, o autor nos joga no mundo imaginário e real dos livros, dos sebos, das dedicatórias, do ato de escrever e da própria crônica.
Esse mundo, ao mesmo tempo de fantasia e de verdade, salta aos olhos do leitor, com seus sortilégios, suas peculiaridades, seu fascínio e seu prazer.
Falando da crônica, afirma, em “Dúvida crônica”: {…} há alguma semelhança com o amor. Ignoro existir uma pessoa apta a conceituar satisfatoriamente esse sentimento; contudo, quando estamos enamorados, sabemos: é amor”. Já sobre os sebos, assinala, em “Sob o pó dos sebos”: {…} Mais do que uma loja aonde se vai à procura de determinado tipo de produto, o sebo é uma área de sociabilidade. Porém, de uma sociabilidade especial, mediada e afirmada pelos livros”.
Com certeza! O sebo é mais que um sebo, é mais que um sebo. E os livros são mais que livros, assim como as dedicatórias vão muito além dos destinatários, e a crônica, em sendo crônica genuína, se não é mais que o artigo, pois o artigo possui sua ontologia própria, não é artigo, é muito diferente dele. Exatamente porque nela, a crônica, passeia a permanente prosa da poesia.
Lucas Arroxelas, com esta publicação, sai no seu encalço, tateando suas esferas ambivalentes e, aqui e ali, topando com seus ecos de beleza.
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