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Há livros saborosos. Não me exijam gêneros ou outra categoria qualquer. Ficção, poesia, ensaio, memórias, não importa. Deixem-me acreditar neste critério arbitrário: o sabor. Território da sensibilidade, da inteligência e da imaginação, o sabor pode decidir o destino de alguns livros, seu lugar especial nas prateleiras especiais das estantes especiais.
O Aurélio assim define a palavra sabor: “s.m. Impressão produzida na língua pelas substâncias sápridas; propriedade que essas substâncias têm de impressionar o paladar; gosto; saibo; (fig.) qualidade; índole; jovialidade; forma; natureza; capricho; talante”.
Se me conservo no âmbito do significado denotativo, não tenho receio em afirmar que certos livros me agradam por demais o paladar, o gosto específico na ceia da leitura. De sua composição concreta, que pode resultar do tamanho, do peso, da marca impressiva, do zelo do papel, posso experimentar a delicadeza do gozo físico e aromático que advém do mistério dos tipos, de parágrafos e frases que a memória há de reter, para sempre, na zona curva do saber, pois saber e sabor pertencem à mesma família filológica e vocabular.
Já na esfera da figuração, onde todos os reinos da polissemia podem se misturar e confundir, posso ensaiar uma curiosa tipologia e enumerar os livros em listas de qualidade, índole, jovialidade, forma, natureza, capricho e talante, como nos ensina o dicionarista.
Onde estaria, por exemplo, Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke? Certamente este é um livrinho de muita qualidade. Qualidade literária, qualidade filosófica, qualidade poética, qualidade psicológica e existencial. Responde ainda por essa qualidade certa didática estilística embutida nos conselhos e sugestões que o bardo tcheco ministra, da maturidade de sua sabedoria, ao jovem Franz Xaver Kappus. Logo na primeira missiva, enviada de Paris, em 17 de fevereiro de 1903, sugere ao pupilo que procure evitar, “de início, os temas demasiados comuns”, pois estes “são os mais difíceis”. Antes já pedira para o jovem se fazer esta decisiva pergunta: “Morreria, se não me fosse permitido escrever?”.
Será que eu morreria, se não me fosse permitido escrever?”. Como me inquieta esta indagação! Como gosto desse livro! Como amo essas cartas! Passei a minha vida lendo e relendo as sábias e saborosas palavras do autor das Elegias de Duíno.
Índole lírica, força poética e evocativa se mesclam pelas páginas de A casa de meu avô, livro de memórias de Carlos Lacerda. Dizem os que o ouviram falar em público, no Parlamento ou nas ruas, que havia qualquer coisa de sagrado no ardor incontido de sua oratória. Ouvi algumas crônicas lidas por ele na Rádio Nacional e senti o calor e o brilho de sua habilidade elocutiva. Mas lembro aos que esquecem ou não sabem: Carlos Lacerda também é um mestre da palavra escrita. Suas memórias de infância, sabem os que tiveram a ventura de lê-las e apreciá-las, exatamente do que estou falando. Conteúdo e estilo se fundem na configuração dos perfis, principalmente no perfil do avô e da casa, e são ricos e verticais os registros da vida no campo e na pequena cidade, como também os traços psicológicos que se desenham na alma infantil do narrador. Não minto se disser que este é o melhor e mais saboroso livro de memórias da literatura brasileira.
Pode ser jovial, tem forma e natureza os ensaios filosóficos de Arcângelo R. Buzzi, reunidos em três títulos indispensáveis: Introdução ao pensar, Clínica do humano e Filosofia para principiantes. Por meio de uma escrita, em tudo criativa e estimulante, com sabor da mais genuína fonte poética, os grandes temas filosóficos são tratados, com o cuidado de quem sabe dialogar com seus pares de ontem e de hoje, sem perder o prumo da autonomia e da originalidade cognoscíveis diante do pensamento e da reflexão. O conhecimento, a vida, a morte, o amor, o cotidiano, o homem, a linguagem, a poesia, a arte, Deus, eternidade, tempo e outros conceitos integram a meditação, diria lírica e intelectiva, racional e intuitiva, deste que é um dos pesos pesados da ensaística brasileira, sobretudo, se considerarmos que no ensaio devem residir, em larga altitude, a claridade e a beleza.
Encerro este improviso, próprio das letras lúdicas, com uma Oração pelo poema, do pernambucano, de Jaboatão, Alberto da Cunha Melo. O sabor já pulsa no título, cheio de ambivalências semânticas. Aqui devo orar pelo poema, suplicar pelas certidões insuspeitas de seus caminhos, ou transmutar os seus versos octossílabos numa espécie de oração ou homilia perante o suplício das palavras, “de qualquer palavra que suavize∕a minha vida, para sempre”, conforme enuncia o eu poético. No seu percurso metalinguístico, metafísico e existencial, esse livro-poema ou esse poema-livro tem capricho e tem talante. Tem o saber e o sabor que só a poesia maior e melhor há de conter.
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