João Pessoa, 12 de junho de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Constato que há uma “intensa” vida cultural na cidade. Eventos os mais diversos. Lançamentos, solenidades, performances, recitais, palestras, exposições, coletivos disto e daquilo, debates etc.
Isto é muito bom. Isto sinaliza para o fato de que estamos na tentativa de nos salvarmos do naufrágio da existência. Ortega Y Gasset nos ensina que a cultura é a única forma de salvação. Ou, para me valer de seus termos, “um movimento natatório”.
Só que se paga um doloroso preço por esses pequeninos pedaços de salvação. Por se jogar nesse movimento. Vou me explicar.
Tenho ido a muito desses encontros culturais, pois sou dado ao intercâmbio das ideias e ao cultivo dos afetos e das boas amizades. Lá, revejo amigos, amigas, confrades, colegas, e experimento o prazer de uma prosa descontraída, o gosto saboroso de um dito picante, uma piada inteligente, uma crítica sarcástica. Sem crítica, a cultura morre! Cultura, para mim, é crítica.
Se se achega, infelizmente, a figura do chato, do adulador, do falso, do mesquinho, temos, em contraposição, a possibilidade de absorvermos novas ideias, de nos depararmos com novos conceitos, de contactarmos com a pertinência de novos projetos, e, assim, o tecido cultural vai se desdobrando na esfera de suas múltiplas linguagens.
Há, não obstante, alguns probleminhas que se repetem e que muito me incomodam. Quero crer que, também, a outrem.
Um deles é o convencional descumprimento do horário. Se o ritual, diz lá o convite, está marcado para as 18 e 30, as coisas só começam, de fato, as 19 e 30 ou as 20 horas. Vejo, nisso, um absoluto e desprezível desrespeito aos convidados, sobretudo, em se tratando de gente, como eu, já tragada pelos anos, cansada e sem muitas ilusões.
Sou um dos que pensam que cumprir o contrato dos horários, dentro dos limites estabelecidos, não é somente uma virtude pessoal, mas também um pequeno e salutar exercício de cidadania. Para mim, pontualidade é prioridade. É virtualidade. Decência. Comunhão com o outro. E o que somos, sem os outros?
Outro probleminha melindroso reside na composição da mesa, quando a ocasião não pode prescindir do ar solene, das lantejoulas da pompa, do glamour dos rituais sagrados. Não sei por que me lembro sempre de um certo Moliére ou de um certo Bernard Shaw, quando da formação dessa cena ao mesmo tempo tosca e hilária.
Sei de gente que morre de desgosto se não for chamada para compor o seleto espaço da mesa. Sentada ali, essa gente se sente gente, dentro de seu reino próprio, na sua mais real e digna posição, como aquele Jacobina, personagem de Machado de Assis, que só se reconhecia vivo e humano, depois de vestir a farda de alferes e se mirar no espelho.
Que loucura, não? Mas a coisa é assim mesmo. Para muitos, a aparência é a essência.
Se não são convidados para a mesa, contentam-se, pelos menos, em serem nomeados, para todo o auditório, como figuras notáveis e relevantes da cena cultural. Esses também só existem, de fato, na perspectiva cavilosa do reconhecimento alheio. Não são nada sem a premiação reiterada dos que o cercam. O elogio à sua pessoa é seu alimento predileto.
Outro probleminha cacete, decerto o pior deles, identifico naquilo que chamo de volúpia da fala. Não há festa sem discurso, não há acontecimento sem o crivo da palavra. A palavra serve a tudo, inclusive, a nada.
Primeiro, porque, seguindo a lógica indecente do atraso, o evento se distende por um tempo indeterminado que beira o cansaço, a indiferença, o tédio. Segundo, porque todos querem falar, e as falas se superpõem, na maior parte das vezes, vazias, monótonas, repetitivas nos clichês e nos desatinos.
Fala o mestre de cerimônia, quase sempre com voz empolada de locutor de rádio. Fala o presidente da mesa, no geral, com retórica batida e timbre bajulatório. Fala o vice-presidente, fala o secretário, fala a diretora da revista, fala o tesoureiro, fala o representante da edilidade, fala a autoridade judiciária, fala o empresário da cultura, fala a voz eclesiástica, fala o ativista, fala o escritor de fora, fala o poeta da terra, fala o músico, fala alguém daqui, fala alguém dali. Haja fala, haja fala.
No frigir dos ovos, todos estamos esfalfados. Nada do que se disse fica retido, até porque o que se disse não disse nada. Somos náufragos de uma estúpida ilusão. Isto não me parece experiência cultural. A tradição não se renova, a vida não se reiventa. Estamos na asfixia da clausura. Engessados no drama da mesmice. Perdidos no pandemônio da caretice e da inanidade.
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