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Jornalista paraibano, sertanejo que migrou para a capital em 1975. Começou a carreira  no final da década de 70 escrevendo no Jornal O Norte, depois O Momento e Correio da Paraíba. Trabalha da redação de comunicação do TJPB e mantém uma coluna aos domingos no jornal A União. Vive cercado de livros, filmes e discos. É casado com a chef Francis Córdula e pai de Vítor. E-mail: [email protected]

Eternos são os mortos

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publicado em 05/05/2024 às 09h03

Na década de 80 estive várias vezes no Cemitério da Boa Sentença, fazendo as tomadas para o curta “Os Mortos Mandam Lembranças”, acompanhado da equipe do Nudoc da UFPB. Um filme que mostra a nudez dos mortos, que dediquei a meu pai, que faleceu naquela década.

  Voltei ao Boa Sentença para filmar novamente, desta vez, cenas curtas para o Projeto K, que venho fazendo desde novembro passado. Cheguei cedo, às 7h, para não acordar os mortos.

Existem mundos e fundos no Boa Sentença – fui filmar o túmulo de Antenor Navarro, que tem um anjo caído no topo, uma beleza estupenda. Hoje, 40 anos depois, o Boa Sentença abriga moradores nos túmulos, os mortos-vivos, na geografia de mundos esgazeados.

Vastos e eternos, os mortos sempre se destacaram entre os vivos. E já tinham me avisado: “cuidado, tem umas gangues atuando no mercado dos mortos”. Ué, o que circundaria essa gente pequena entre as catacumbas? Eu posso chamar de catacumbas, Nelson Barros?

Passei pelo túmulo da menina Maria de Lourdes, que agora tem uma placa luminosa – “é proibido acender velas” – a menina, conta a história, veio dos confins da Paraíba, para trabalhar numa casa como empregada, até que uma joia some e ela levou a culpa. Naquele tempo existia a polícia mirim da capital: bateram nela até a morte. Não é fácil confessar um roubo quando o ladrão é outro.

Fiquei a vigiar os vivos, na divisão dos túmulos, os mais ricos e as gavetas, numa ilusão inigualável de que não estava certo o que se dizia no Sertão – “pra que tanto orgulho, se o destino é a morte?”. A frase era um refrão popularesco – os poderosos sempre ostentavam os túmulos dos seus mortos.

O choro de antigas culturas, gente esculhambado com Deus, por ter levado o pai ou mãe, não ascende o  fogo entrecortado, as mãos calejadas, porque hoje a morte está estampada nas redes sociais – nunca vi tanta morte anunciada.

Cresce o reflexo nessa visita  que fiz ao Boa Sentença, as cenas  (in)conscientes, gente vendendo espetinho, menino mamando, mulher lendo mão e sobre os túmulos objetos cruzados, que se fazem atrativos para o roubo escancarado. Jesus aparece em todos os cantos, até com as pernas amputadas.

 Um tédio na saída, um modo a alcançar a simplicidade que nos faz tremer diante de nós próprios, e não há espelho nesse reflexo. Quem sairia de casa, às 7h da manhã para ir filmar o Boa Sentença?

 Não há espelho que copie a eternidade dos mortos, talvez fotografias, que conservam os vivos e suas flores do mal.

 O mesmo brilho que se crava na pupila, a mesma cena seja de noite ou de dia, o túmulo do Padre Zé Coutinho, a festa do sol, até o ritmo mais antigo de licantropos tagarelas.

Nada além, tudo se converte em ossos e ofícios, e eu a me perguntar – os mortos ainda mandam lembranças?

Kapetadas

1 – Madonna, Ivone Lara é mais.

2 – “Olho por olho, dengue por dengue!” – disse o operador da máquina de fumacê.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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