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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Tempo de cartas

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publicado em 11/01/2023 às 07h00
atualizado em 10/01/2023 às 18h08

Houve um tempo de cartas. Escrevi muitas e muitas recebi. Destas últimas guardei quase todas num arquivo pessoal que conservo como precioso escaninho da memória individual. Destas cartas, muitas são íntimas e dizem respeito apenas ao comércio subjetivo e confidencial dos correspondentes, pertencendo, assim, a um pequenino tesouro psicológico e a situações e vivências de cunho eminentemente particular.

Aqui e ali, pego as tardes de domingo, esse dia triste e melancólico por excelência, para folhear e reler, à distância espiritual, algumas palavras daquelas conversas íntimas que se perderam nas léguas do tempo.

Há as cartas que vou classificar como as da vida literária. Estas, talvez, possam despertar o interesse de outrem, para além do círculo estreito do remetente e do destinatário. Relendo muitas delas, e me colocando como um leitor afeiçoado ao gênero epistolar, percebo, nelas, algum valor histórico, documental, filosófico, estético, permeando a lógica do pensamento e dourando o corpo da frase.

Se nestas cartas, os autores falam de obras literárias, comentam passagens desse ou daquele texto, sugerem leituras, remetem para certos detalhes na esfera da criação artística, não deixam, paralelamente, de falar de si mesmos, já na pele do leitor, do poeta, do ficcionista, do ensaísta ou do crítico literário.

Quando lhe enviei O livro da agonia e outros poemas, Manoel de Barros assim me respondeu: “[…] Não tenho dúvidas de que se trata de um poeta […] Gosto mais dos poemas antigos. Das coisas de que você gosta mais. Do Testamento. Me tocam mais as coisas desimportantes; são mais concretas que as agonias. E são mais despedaçadas”.

Ora, tais palavras serviram a mim e a certa linhagem de minha poesia. Pode servir a você, caro leitor, ou poeta que me lê. Aqui se desenha, quem sabe, uma concepção de poesia ou algum critério existencial e estético para uma “gramática expositiva do chão”, tão bem explorada pela voz do poeta pantaneiro.

“O testamento”, a que ele se reporta, é um dos meus poemas antigos e de que mais gosto. Nele, me aproprio da linguagem jurídica para, numa reformulação livre e poética do discurso cartorial e forense, inventariar meus bens essenciais como legados para as pessoas que amo. Peça típica de minha vertente lírica e telúrica com a qual, parece, o grande poeta de Mato Grosso se identificou, talvez porque seja esta uma de suas matrizes expressivas fundamentais.

Ainda sobre O livro da agonia, e nessa mesma clave do telurismo, o poeta cearense Francisco Carvalho afirmou, em carta mui generosa: “[…] Sua poesia tem a textura forte das imagens da terra. Toda ela é urdida de símbolos e metáforas que traduzem vigorosamente o universo do autor. Enquanto celebra palpitações da natureza que o rodeia, o poeta fala ´dos que uivam de amor∕ do vento da nuvem do medo∕ dos rascunhos da mosca, da caligrafia∕ de tudo que apenas se esboçou”.

Francisco Carvalho, poeta órfico de grande engenho e arte, também tem, no telurismo, uma das forças motrizes de sua soberba poesia. Os versos que cita são do poema “Motivos para o meu verso”, espécie de profissão de fé que mescla, num só tecido verbal, temas existenciais e agônicos com a verdade imparcial dos elementos da terra. Ressaltando aspectos desta linhagem lírica, dentro de meu território poético, Francisco Carvalho, de certa maneira, chama a atenção do leitor para um dos seus percursos temáticos seminais, tão bem desenvolvidos em obras, como As verdes léguas e Rosa dos eventos, entre tantas outras.

Com o tempo cartas deste tipo foram escasseando. As novas tecnologias como que decretaram o seu silêncio, perdendo-se, assim, um repositório de ideias, conceitos e informações indispensáveis ao acervo da vida literária. Sinais, provavelmente, dessa nova era virtual. Sem dúvida, eficaz, eficiente, efetiva, porém, fria e anônima.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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