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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

O latim vivo

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publicado em 07/10/2022 às 08h14
atualizado em 07/10/2022 às 05h18

Sempre tive a convicção de que nada substituirá o livro de papel. Por motivos vários, dentre eles encontra-se a explicação magistral de Millôr Fernandes (foto): Livro não enguiça. Ontem, tive a prova cabal disso. Enquanto folheava o dicionário de latim (Le grand Gaffiot Dictionnaire Latin-français), à procura de um termo, dei de cara com uma palavra interessante nummosexpalponĭdēs, que significa “o que extorque dinheiro”.

A palavra é composta de nummŭs, nummī, dinheiro, e dos verbos expalpō, expalpāre ou expalpŏr, expalpārī, ambos defectivos, pois só se conjugam no infectum, aspecto para as ações inacabadas, e que têm o sentido de “acariciar para obter algo ou obter dinheiro através da astúcia”. Por sua vez, o verbo primitivo é o depoente palpŏr, palpārī, de que provém o verbo ativo palpō, palpāre, significando “apalpar, acariciar, seduzir com presentes, fazer a corte”…

Veio-me de imediato, à mente, a pergunta: o que não tiveram de apalpar os corruptos que nos tiram tanto dinheiro? Vejam que não uso o perfectum “tiraram”, o aspecto das ações acabadas, uso “tiram”, que é infectum e se coaduna com a morfologia do verbo, conforme vimos mais acima, porque continuamos sendo vítimas dos corruptos, que sempre se dizem injustiçados, talvez à espera de serem justiçados…

A situação me remeteu presto a Petrônio, escritor latino do primeiro século depois de Cristo (27-66), considerado o “árbitro das elegâncias” (arbiter elegantiārum), e frequentador da corte de Nero, em cujo Satyricon, primeira narrativa de costumes do mundo ocidental latino, Petrônio nos revela que essa apreciação da sociedade com relação aos teres e haveres é muito mais antiga do que se poderia imaginar. Vejamos. Desentendendo-se com a mulher, Fortunata, Trimalquião comenta com Habinas, um de seus convivas, a origem de sua imensa riqueza, numa trajetória de escravo a milionário, cujo arremate é o seguinte:

Credite mihi: assem habeas, assem ualeas; habes, habeberis. Sic amicus uester, qui fuit rana, nunc  est rex (LXXVII, 6)

Acreditai em mim: um centavo tenhas [assim mesmo, misturando as pessoas gramaticais], um centavo valerás; se tens (valores), terás tido (valor). Assim este vosso amigo, que foi rã, agora é rei.

A atualidade de Petrônio não me choca, porque estou cansado de ver muito sapo impado, acreditando-se rei, por causa dos caraminguás que tem no bolso ou que distribuiu com os apaniguados, quase sempre fruto de desvios e de propinas.

Alguns desavisados, no entanto, vivem a reverberar ser o latim uma velharia de erudição saudosista, por ser uma língua morta e não servir para nada. Morta, meus queridos, está a Vergonha. Vivo, vivíssimo está o Descaramento apalpador.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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