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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Direito e vida

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publicado em 05/10/2022 às 07h00
atualizado em 04/10/2022 às 15h27

Anos 80 do século passado, em meio às exigências disciplinares de um mestrado em direito penal, na velha faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, lia atentamente a coluna semanal de Walter Ceneviva, no Estadão, abordando, técnica e cientificamente, as questões práticas dos diversos ramos do direito.

As matérias recebiam um tratamento objetivo e esclarecedor por parte do ilustre advogado e jurista, sempre à margem dos esoterismos terminológicos da dogmática jurídica, num esforço, decerto louvável, de tornar simples o complexo, e de demonstrar que o direito, em todas as suas fontes (norma legal, costumes, doutrina e jurisprudência) se entrelaça com as solicitações da vida cotidiana de todos nós.

Hoje não leio mais Walter Ceneviva. Nem sei mesmo de seu paradeiro. O próprio direito, mesmo o criminal, já não me atrai tanto como nos tempos ilusórios da juventude. Aqui e ali, só para matar a saudade do rigor e do brilho do texto doutrinário, compulso fragmentariamente as páginas de um Nelson Hungria, um Aníbal Bruno, um Roberto Lyra e um Caio Mário da Silva Pereira, já não tão focado na substância dos conceitos, mas tão somente seduzido pelo gosto e prumo da palavra bem empregada, no momento certo e no lugar certo.

Mas, de todo, não me afastei do direito. Aliás, ninguém pode se afastar do direito, uma vez que o direito está entranhado na palpitação de nossos desejos e na frequência rotineira de nossos atos. O direito está dentro de nós, atravessa o mundo, rege a organização das coisas e das pessoas, rastreando, se possível, os passos sagrados da justiça.

Quem me lembra tudo isto é o colunista de A União, Fernando Antônio de Vasconcelos que, nos seus escritos hebdomadários e nos seus livros de direito, traz a vida ordinária ou extraordinária, para submetê-la ao crivo de seu olhar agudo, atento ao banal, ao corriqueiro, ao estranho, ao absurdo, ao grotesco, ao trágico, tudo, enfim, bem arrumado na planilha da análise jurídica e no calor da empatia humana.

Leio agora Crônicas de vida e felicidade (João Pessoa: Ideia, 2021), logo depois de ter lido Missão cumprida: história de minha vida (João Pessoa: JRC Gráfica, 2020), e destas leituras colho as informações necessárias e a pertinência de conhecimentos variados, sobretudo no que toca às relações do direito com a vida.

A edição de suas crônicas, ou melhor, de seus artigos, comentários e narrações, já sinalizam para a diversidade temática de seus interesses cognitivos, embora, jungidos, todos, pela base doutrinária e jurisprudencial de um operador do direito de capacidade múltipla. “Vida em família: casamentos, separações, traições e divórcios”; “Sexo, amor e vida”; “Implicações jurídicas na vida amorosa”; “Saúde e felicidade dos idosos: alimentação, namoro e diversões”, e “Internet e felicidade nas redes sociais”, eis o espectro que conduz os exemplos, as interpretações e os julgamentos do articulista.

Não há caso investigado que não traga as suas circunstâncias humanas e os seus alicerces jurídicos; se alguns parecem simplesmente absurdos e outros melodramáticos; se existem aqueles que nos fazem rir ou chorar; todos, cada um, na sua singularidade ontológica, guarda e revela um ensinamento acerca dos enigmas da vida.

A tudo Fernando Antônio de Vasconcelos, reunindo a vasta experiência de promotor público, advogado, professor e escritor, esmiuça os contornos das ocorrências narradas, num estilo simples e direto, centrado quase sempre no ponto essencial das questões. Não lhe falta, neste ou naquele momento, a leveza e o humor na apreciação dos fatos e das criaturas, ou, em perspectiva diversa, a digressão aforismática, a traduzir certos imperativos de sabedoria filosófica.

No texto, “Quem trai, paga” (p. 119-120), por exemplo, a conclusão se encaminha para o humor, captado na fala de Mário, colega de Sinzenando:

“Antigamente, o marido traído recebia apenas a alcunha de corno e a vida seguia. Os mais exaltados lavavam a honra com sangue, matando o amante ou a mulher (ou ambos), enquanto os mais deprimidos até se suicidavam. A mulher traída era sempre tratada como vítima de um insensível. Agora, não. Traição custa caro!”.

E como pode custar!

Já no texto “Adultério e paternidade” (p. 93-94), depois de relatado o episódio, o autor arremata com estas palavras de sabor ensaístico:

“Há pessoas que são destituídas de quaisquer sentimentos, tais como amor, compaixão, solidariedade e caridade. Consideram a entidade familiar um amontoado de gente, sem quaisquer vínculos morais ou espirituais. Para alguns, tanto faz a existência de filhos, ou não. E, assim, vivem como animais, muitas vezes, orientados pelo instinto”.

Sem dúvida!

Para usar uma linguagem existencialista, seriam pessoas (não bem pessoas, mas apenas criaturas!) inautênticas, cerceadas pelos muros da mera facticidade. Seres determinados, sem a marca humana da liberdade. Animais, na pura acepção do termo.

Vê-se, portanto, que ler os escritos de Fernando Antônio de Vasconcelos, seja os de índole jornalística, como os compilados em Vícios e medos modernos (2006), seja os de inclinação didática e científica, como Responsabilidade do profissional liberal nas relações de consumo (2010), é sempre uma experiência valiosa. Pelo prazer e pelo aprendizado. Crônicas de vida e felicidade está aí para reforçar o poder probatório de minhas palavras.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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