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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Diário de horrores

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publicado em 21/09/2022 às 07h00
atualizado em 20/09/2022 às 19h45

Carlos Alberto Azevedo (foto) não é um antropólogo comum. Há, nele, alguma coisa de artista e de pensador sempre tocado pelo espanto de existir, consigo mesmo e com o outro, em meio à pluralidade dos saberes. Seja no que escreve acerca dos resíduos arqueológicos do nosso patrimônio ecológico e paisagístico, seja no compromisso com os valores históricos e arquitetônicos de nossos monumentos, seja nos seus passeios pela geografia literária e estética, persiste, natural e espontaneamente, o gosto de um olhar empático para com os processos de criação humana, assim como a percepção do elemento poético nutrindo a vitalidade das coisas.

A antropologia, enquanto ciência que se ocupa do homem em seus procedimentos culturais, não elide, nele, a possibilidade de integrá-la ao âmbito transversal da interdisciplinaridade, para, nela (a interdisciplinaridade), abrigar instrumentos de observação que podem capturar os objetos sociais na dinâmica das interconexões que sempre ocorrem na tessitura da própria existência.

Penso assim porque leio e releio as páginas de seu mais recente livro, Tristes tempos: o coronavírus & eu (João Pessoa: Ideia, 2021), de título à Lévi-Strauss, considerado por ele mesmo uma espécie de “relato documental” sobre o tempo da pandemia.

A obra pode ser vista como um diário escrito entre 18 de março de 2020 a 23 de março de 2021, numa técnica de pura bricolagem, através da qual o autor se apropria dos mais diversos registros discursivos, para compor sua narrativa de horrores e como que refletir sobre o absurdo que nos envolve dentro dessa tragédia universal.

Notícias de jornal, palavras de amigos, fragmentos de livros, recados aleatórios, citações, flagrantes, observações, avisos, constatações, pensamentos, enfim, cortes e recortes de mensagens deslocadas de seu contexto original, com a finalidade, no entanto, de condensar, já em outro parâmetro expressivo, a visão, o desconforto, as inquietações, a compreensão do autor face ao caos que o coronavírus deflagou com o seu veneno letal.

Aqui, o leitor vai acompanhando o desenrolar da tragédia a partir das mensagens do dia a dia, dos diálogos eventuais, dos telefonemas, e-mails, redes virtuais e outros meios à distância, ao mesmo tempo em que vai se habituando aos imperativos de comportamentos inesperados que a higienização, o distanciamento e o isolamento sociais exigem enquanto medidas profiláticas e de salvação.

Vejamos alguns exemplos.

À página 36, diz o narrador: “Vale a pena ver novamente: Morte em Veneza, filme de Luchino Visconti, que se passa em Veneza assolada pela peste. Está disponível online – um presente de Páscoa para os cinéfilos que estão em confinamento domiciliar”. À página 75, faz a seguinte sugestão de leitura: “O primeiro livro que sugiro que se leia pós-Covid – 19 é Ter ou Ser?, de Erich Fromm. O mundo pós-pandemia trará transformações impensáveis – será, sim, sem sombra de dúvidas, a sociedade do SER. Mais humana. Mais solidária e eficiente”. E à página 183, revela: “Terminei de ler Raymond Williams: O campo e a cidade. Faz uma anatomia da sociedade rural inglesa, inclusive analisa muito bem a comunidade cognoscível da escritora Jane Austen, onde os relacionamentos sociais eram do tipo face a face”.

Pinçando detalhes, emitindo opiniões, costurando ideias, elaborando conceitos, noticiando os pequeninos espantos de sua vida interior e os confrontando com a objetividade trágica desses “tristes tempos”, Carlos Alberto Azevedo pesa os percalços e pensa as consequências do fenômeno cósmico, sem desconsiderar as componentes da atual conjuntura histórica do mundo.

Subjaz ao fio condutor de todas as notas registradas, não importa a origem semântica de seus dados ou de suas conclusões, um persistente sentimento de exílio, uma incisiva convicção de que a tragédia em que mergulhamos como habitantes do planeta, conduz, dentro de si, uma tragédia mais intensa e mais dramática. O próprio autor nos chama a atenção para isto já no pequeno prefácio por ele mesmo escrito, quando assinala, de maneira pertinente: “{…} a nossa maior tragédia não é ser contaminado pelo vírus, hoje ou amanhã, é, sim, não poder conviver normalmente com o outro. Deixar de sentir verdadeiramente o outro”.

Sabe-se que existe, hoje, vasta e variada bibliografia sobre a Covid – 19. Obras científicas, filosóficas, literárias, jornalísticas vêm procurando analisar e interpretar os sortilégios desse flagelo mundial em múltiplas perspectivas. Não é para menos. O homem, de repente, se viu bafejado pelo hálito maligno do monstro, pela força destruidora da peste, pelos estranhos vocativos de um insólito rito de passagem. É natural, portanto, que o fato, incontornável em sua letalidade, faça brotar os germes luminosos do pensamento.

Creio que o escritor e antropólogo Carlos Alberto Azevedo, com estes Tristes tempos: o coronavírus & eu, compreendeu bem o chamado de sua consciência, trazendo, a seu modo, diria disciplinado e lúdico, uma contribuição decisiva para os que vivem essa realidade, desejando, é óbvio, sobre ela refletir. Refletir para não se desesperar, pois, se este livro me parece um diário de horrores, nem por isto deixa de se manifestar, em suas páginas, certa esperança no ser humano. Leia-se a anotação do dia 23 de março de 2021: “Leitor, nada mais tenho a dizer. Fiz um relato documental completo dos tempos difíceis em que estamos (ainda) vivendo. No momento, leitor, só quero uma coisa: voltar novamente a minha essência humana. Ser gente. Poder abraçar e beijar”.

A essência humana! Não seria uma procura antropológica e poética?

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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