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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

O primeiro verso

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publicado em 14/09/2022 às 07h00
atualizado em 13/09/2022 às 15h54

 

Tendo o primeiro verso, é quase certa a fatura do poema. Pelo menos, comigo é assim. O primeiro verso é como aquela pedra jogada no lago: espalha camadas de sentido numa ritmada ressonância que culmina na formação do poema. Foi Valéry, salvo engano, quem disse que Deus dá o primeiro verso; os outros, caberá à competência do poeta consumá-los.

Será que o poema, portanto, está no começo e não no fim? Será que o poema tem fim?

Não sei. Nunca sei com certeza o que existe dentro das palavras e, principalmente, na esfera de suas mágicas relações. Da mesma forma vejo o verso. O verso, esta viagem de ida e volta num compasso simultâneo, sempre me deixa no desconforto das incertezas ou mesmo no milagre da ignorância.

Como lidar, então, com um material que se desconhece, não precisamente na sua técnica palpável, mas na possibilidade do seu mistério? Como quase tudo, o verso possui dois lados, ou duas realidades. Uma externa, que congrega o atrito das palavras naquilo que elas detêm de físico e concreto: sílabas, fonemas, funções, pausas e silêncios; outra interna, que guarda e preserva o minério dos sentidos: ideias, temas, sensações, emoções e pensamentos. Se lá reside o corpo material do poema, aqui parece habitar a névoa da beleza, com seus quesitos essenciais, isto é, simetria, integridade e epifania.

Sim, o verso só é verso se alcançar o imponderável da epifania. Os vocábulos que o compõem, o metro ou a falta de, o ritmo, a rima ou a falta de; acentos e cadências, estrofes e cavalgamentos, nada disto me parece suficiente para decidir o seu destino dentro da vida do poema. E diria mais, sem ousar fazer trocadilho: o verso só decide seu destino dentro da vida do poema se estiver cheio de vida, ou seja, carregado da verdade de significações explícitas e implícitas, claras e veladas, reais e imaginárias, éticas e estéticas.

Claro: isto pode existir na força do primeiro verso, que o faz expandir-se, em camadas ou círculos, num movimento quase natural. Mas deve existir, e aqui talvez esteja a dificuldade maior, no liame do verso com outro verso, no vazio que se tece em suas imbricações semânticas e sintáticas, a compor, quem sabe, essa cadeia informe e difusa, cuja fala plural é como o mito, que, a concordar com Fernando Pessoa (foto) “é o nada que é tudo”.

Não é raro, por exemplo, um poema conter seis, sete ou oito versos, e a poesia só se cristalizar em um. A perfeição deste verso obviamente confronta a imperfeição dos outros, portanto, a imperfeição do poema. Quero crer, assim, que a perfeição do poema está na exata medida da perfeição do verso ou dos versos que o compõem.

A propósito, aprecio muito a leitura de poemas, seguindo os passos desse método indiossincrático. Descoberto o verso perfeito, que pode ser o primeiro ou qualquer outro, vou descartando os imperfeitos como verbos inclassificáveis e inúteis. Resta naquele verso, por conseguinte, o osso da poesia, a formalidade vital do poema. As palavras na sua rigorosa exigência estética.

Minha tese é a de que todo verso perfeito, o primeiro ou um qualquer, carrega, dentro de si, uma infinidade de outros, sendo, a bem dizer, pontos de partida privilegiados para a consecução de novos poemas. Este meu estranho método é mais que um simples método de leitura, ou de exercício crítico. É um modo de fazer outros poemas, de perseguir a perfeição de ouros versos.

Mas voltemos ao primeiro verso. Quero insistir: ali está tudo ou quase!

Venha de Deus, do Diabo, de outros deuses; da poeira cósmica, do começo dos tempos, da flor da eternidade; da tragédia dos homens, das terras devastadas, dos países esquecidos, das línguas mortas; dos poemas maiores, das obras inacabadas, dos poetas anônimos, do ser ou do nada. Enfim, venha de onde vier, só ele, o primeiro verso, importa. Sem ele, que é o ato perfeito, a poesia ainda é apenas potência; substância existencial e amorfa, oferenda gratuita e generosa, espanto, entusiasmo, comoção, a desafiar a sensibilidade e a imaginação da criatura humana.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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