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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Dois poemas

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publicado em 10/08/2022 às 07h18

Pastoral da casa antiga

A casa é tudo.

Um rio memorial se alonga

em cada fibra de cal.

O tempo nos telhados,

indômitos luares,

ventos vestidos de sombra.

Nas janelas

o orvalho apascenta as estrelas,

acalenta os fantasmas

com seu leite de relva.

Abrem-se as comportas do sonho

com as safiras da manhã,

cimitarras na tarde.

Pelos postigos

tecem as vozes da noite

a trama ranhenta das tramelas,

portas acesas, ventanias,

vitrais.

A cumeeira é silêncio

Inaugurando as danças do sono.

Casa, abriga de assombros,

o inverno te visita

com seus danados dragões.

Que dizer da sala

e seu pântano de potassa?

Que dizer das vigas

e suas vértebras solares?

Que dizer do sótão

aonde se abeira a colmeia

e o infinito?

Eu sei: a casa é tudo.

O hálito dos mortos

nas abóbadas recende

o passado que não passa.

O cristal do tempo

espelha as varandas,

e o lodo da lua alaga

os quintais.

Nem o salitre

sepulta os antúrios de amor

regados no alpendre.

Nem a ferrugem dos anos

devora o mistério no copiar.

A casa está viva.

Inteira como uma lenda,

Intacta como uma pedra,

Perfeita como o deserto.

Afinal, somos nós que ruímos…

(DE Ofertório dos bens naturais, 1998)

Qualquer homem (sua carência)

Qualquer homem carece,

Inteiro, de uma cidade.

De uma cidade inteira

como é inteira a verdade.

Qualquer homem carece

de outro homem, inteiramente.

De outro homem que, como ele,

queira-se inteiro homem,

internamente.

Qualquer homem carece

de uma mulher.

Carece de outra mulher que seja

inteira como é inteira uma avenida,

como é verdadeira uma cidade.

Como é inteira uma cidade

com seus bairros mortos e arredores

postais, de sonhos urbanizados.

Qualquer homem carece

de uma mulher, inteira e espaçosa

e aberta como um deserto.

Qualquer homem não é nada

se não se perde pelas dunas

de uma mulher amada.

De uma mulher,

planície estendida e agreste

que se entrega e se alarga,

tantas mulheres,

como qualquer cidade.

(De Caligrafia das léguas, 1999)

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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