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A divina Música

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publicado em 18/07/2022 às 07h00
atualizado em 17/07/2022 às 15h14

Assisti há uns meses a uma entrevista no Youtube de Mateus Aleluia, (foto) ex-Tincoãs, em que ele subverte o primeiro versículo bíblico com muita lógica e espiritualidade: o princípio não foi o verbo, mas o som. E é com base no “Evangelho segundo Aleluia” que prossigo nesta toada, pois toda Arte de Primeira Grandeza, a Música entre o princípio e as principais, é uma das colunas divinas que nos salvam. Até – ou principalmente – de nós mesmos.

Nietzsche já dizia, lá no século XVIII, que sem Música a vida seria um erro e que só acreditaria num Deus que dançasse. Pois, cá comigo, creio que a Música seja uma Arte tão completa e poderosa que poderia perfeitamente ser a base do currículo escolar inteiro. Com os vários elementos que a compõem e toda a História que percorre nos mais variados recantos da Terra desde os mais distantes tempos – talvez antes mesmo de existir um ser vivo por aqui, como ressalta Mateus Aleluia – ela abrange com seus sons, ritmos, compassos, acordes, melodias, harmonias, partituras, letras, cantos, vocalizações, afinações, instrumentos, regências, orquestrações, pausas, conexões, improvisações, arranjos, técnicas, produções, composições etc etc etc todas as matérias que aprendemos separadamente na escola.

Música é a interdisciplinaridade por excelência. Por intermédio dela se aprende Matemática, Línguas, Literatura, Artes, Filosofia, História, Geografia, Física, Religiões (ou Crenças, inclusive as Pagãs) e quem sabe até Química e Biologia, os alquimistas musicais, tendo o mago Hermeto Pascoal à frente, que nos diga. A Música unifica todas as matérias. E todos os espíritos. Mais do que aulas de Música, que haja ensino com a Música.

Esta minha tese é reforçada por um mestre. Mesmo sem saber que eu existo e que pensinto de forma bem semelhante, um dos maiores compositores da História da Música brasileira, João Bosco, disse certa vez ao jornalista Roberto D’Ávila que é preciso se dar mais atenção à questão educacional da Música.

Ele mencionou este pensentimento logo após dar uma pequena aula sobre o samba sincopado, afirmando que a “sílaba forte” do batuque não é a batida, mas o silêncio. E completou: “Isso é Matemática e Filosofia”. Parte deste texto foi escrito poucos dias antes da entrevista e obviamente que a conexão me fez ficar com olhos, ouvidos, todos os sentidos vidrados em tudo o que ele disse naquela entrevista dividida em duas partes na TV.

Entre tantas outras pequenas lições que João Bosco deu, destaco aqui mais uma: a de como João Gilberto revolucionou o violão. Bosco mostrou no seu instrumento como seu xará baiano transpôs para as cordas o que anteriormente apenas os de percussão faziam. Para ele, João Gilberto reinventou esse instrumento tão identificado com a riquíssima Música brasileira. E lembrei de um show que assisti em Salvador, no iniciozinho de 2006, no qual um violonista que infelizmente não me recordo o nome deu uma aula-espetáculo parecida, explicando como João Gilberto mudara o andamento do samba e chamando a atenção para o quase sussurrar de seu canto. Esqueci o nome do professor, mas não da aula.

Voltando ao outro João, Bosco também falou de Dorival Caymmi, que tinha a capacidade de transformar seu violão de acordo com o cenário que criava para suas músicas: praieiro, urbano ou de terreiro. Aqui dou uma pausa para recomendar muito o documentário “Dorival Caymmi – Um homem de afetos”, de Daniela Broitman. Não sei onde se pode assistir atualmente, mas vi num festival online no ano passado e gostei tanto que fiz questão de parabenizar a cineasta, para quem trabalhei como assessor de imprensa num festival de cinema no Rio de Janeiro, há uns 7, 8 anos, da qual, creio, foi a curadora.

João Bosco relatou também naquela entrevista a Roberto D’Ávila como, sendo um anônimo rapaz de Ponte Nova (MG), estudante de Engenharia em Ouro Preto (MG) no fim dos anos 60, reuniu coragem para ir até Vinicius de Moraes, que estava hospedado num hotel na cidade histórica mineira, para mostrar suas músicas, logo fazer uma parceria com o poeta na mesma madrugada e as consequências daquele mágico dia.

Algum tempo depois, no início dos 70, Vinicius o chamou em sua casa no Rio para que João Bosco e seu grande parceiro, o estudante carioca de Medicina Aldir Blanc, apresentassem seus trabalhos a um grupo que tinha, entre outros, Tom Jobim, Chico Buarque e Toquinho. A pedido de Roberto D’Ávilla, João tocou inteira uma das músicas que apresentara naquele outro dia histórico: “Agnus Sei”. Gostaram tanto, que ele a gravou no Lado B de um compacto distribuído pelo jornal “O Pasquim”, tendo no Lado “A” a então inédita “Águas de Março”, de e com Tom Jobim. Sempre que ouço “Agnus Sei”, prestando muita atenção à poesia de Aldir, fico imaginando por quantos lugares e tempos na História música e letra percorreram até desaguarem na maravilhosa composição dessa dupla.

E ouvindo Música, vou aprendendo assim mais algumas das lições de  professores-compositores como os Joões Bosco e Gilberto, Aldir, Vinicius, Toquinho, Tom, Chico, Caymmi, Aleluia, só para citar os clássicos supracitados, já que há também, ao contrário do que muitos dizem, muita gente nova maravilhosa na nossa Música. “O novo sempre vem”, não é mesmo, Belchior? Quem quer de verdade, busca, escuta e, até sem se dar conta, estuda.

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