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Médico. Psicoterapeuta. Doutor em Psiquiatria e Diretor do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba. Contato: [email protected]

A grandeza de Geraldo

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publicado em 01/02/2022 às 07h10

Foi anunciando o show de Geraldinho Azevedo e Chico César. Dois artistas legítimos defensores da liberdade de cantar, desde os obscuros momentos que reinavam ditaduras na América do Sul.

Geraldo iniciava sua caminhada artística no Rio de Janeiro e foi preso (ou sequestrado) por agentes do estado e torturado. Essa história, contada em entrevista ao Jô, tem dois aspectos que saltam aos olhos. A nebulosa estrutura psíquica de um torturador, com traços de psicopatia e sadismo; confrontando-se com a capacidade de defesa da mente de um torturado.

Governo de Arthur Costa e Silva. 41 dias de prisão. Depois, no governo Geisel, em que ficou menos tempo preso, porém, mais violento. Sequestrado em 7 de setembro, aproximava-se de casa com a filha. Na cadeia, ouviu as torturas do cunhado do Henfil. Sentiu a morte de Armando Frutuoso, um operário carioca.

Numa sessão de choques elétricos, usou os conhecimentos de teatro e simulou um apagão, depois de muito gritar e ouvir deboches de que tinha uma boa voz. Chama o médico! Você sabia que médicos “assistiam” pacientes em tortura? Quanta vergonha eu sinto!

Nu, encapuzado, era obrigado a cantar Caravelas que estava na novela da época. Humilhante, ignominioso, nojento. Corra, não pare não pense demais, repare essas velas no cais, que a vida é cigana… Caravana, pedra de gelo… desgelou teus olhos. Pois essa música, sob o som de quem me emocionei tantas vezes, foi trilha de tortura. Nojo!

A grandeza de Geraldo foi esquecer tudo, depois de imaginar sangrando o torturador com uma lâmina que carregava consigo.  Foi seguir cantando. Iluminando nossos momentos com canções tão lindas e tão lua em noite clara. Compondo canções com suavidade e sentimento. Do outro lado, nada nem ninguém explica a mente de um torturador. Nem Gobodo-Madikizela deve ter entendido, apesar de cinco anos conversando com um, papos refletidos no livro “Um ser humano morreu naquela noite”;  e apesar do seu envolvimento com situações de traumas na África do Sul. Eu, particularmente, sou capaz de enxergar seus traços, mas não entendo o ato da tortura.

Certa feita atendi a um (ex)torturador. Sua face era de um indivíduo assustado, escondendo-se dos demais. Um farsante por entre os homens. Vergonha do passado. Culpas. Imagens e fantasmas revisitando seu presente. Desapareceu. Não precisou de lâmina. A sua mente o traiu e o sangrou.

A chama continua e, nesse dia branco, exalto a sua grandeza, Geraldo.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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