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Clara Velloso Borges é escritora, professora de literatura e mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]  

Recusa ao esquecimento

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publicado em 17/12/2021 às 07h09

Nas últimas semanas, em qualquer brecha de tempo, acessei o canal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no YouTube, para assistir ao júri da Boate Kiss. O incêndio na boate, que matou 242 jovens, ocorreu há quase nove anos e devastou a cidade de Santa Maria. Mais rápida do que os trâmites legais, a jornalista Daniela Arbex contou a história das vítimas no doloroso livro Todo dia a mesma noite.

Aplicando a mesma sensibilidade com a qual asfatou o estigma da loucura manicomial em seu premiado livro, Holocausto Brasileiro, Arbex se dedicou a realizar um retrato comovente daqueles que partiram em Todo dia a mesma noite. Mais do que isso, a jornalista fez um registro importante daqueles que ficaram. Afinal, não são só sobreviventes os que estavam na boate e saíram com sequelas físicas e emocionais. São também vítimas pais, mães, irmãos e amigos dos falecidos, que levam uma vida completamente diferente da que conheciam antes da tragédia.

Assim, Todo dia a mesma noite nos apresenta ao médico que precisou atender a inúmeros jovens feridos, ciente de que seu próprio filho precisava de socorro, mas manteve-se firme aos deveres do hospital. Conhecemos um casal que, ao saber da tragédia, combina de matar um ao outro, caso suas duas filhas tenham falecido no incêncido. Lemos sobre o desespero dos bombeiros, que observavam pilhas de corpos com celulares tocando incessantemente; um deles possuía mais de 130 chamadas do mesmo contato, “Mãe”.

Se o incêndio já era conhecido por todo o país, o jornalismo de Arbex confere identidades ao número de vítimas. Quem eram, por quem eram amados, o que faziam. Obviamente, por serem descritos por seus familiares, os jovens cujas vidas foram ceifadas são descritos de forma inteiramente positiva. Há quem considere uma falha jornalística, já que o papel do repórter é ouvir diversas fontes. Por outro lado, acredito que a homenagem seja o único meio possível de lidar com o luto. Todo dia a mesma noite é, sobretudo, um gesto de recusa ao esquecimento da memória destas pessoas.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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