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Jornalista paraibano, sertanejo que migrou para a capital em 1975. Começou a carreira  no final da década de 70 escrevendo no Jornal O Norte, depois O Momento e Correio da Paraíba. Trabalha da redação de comunicação do TJPB e mantém uma coluna aos domingos no jornal A União. Vive cercado de livros, filmes e discos. É casado com a chef Francis Córdula e pai de Vítor. E-mail: [email protected]

Não tem como esquecer

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publicado em 28/09/2021 às 07h54
atualizado em 28/09/2021 às 06h07

Quis ouvir um saxofonista tocar Cole Porter e não acreditei. Estava diante das saudades mais sombrias, no centro da cidade, ouvindo jazz no fim da tarde de sábado passado.

Quis sentir o prazer de levar uma topada do passado, 40 e tantos anos depois.

Quis quebrar o gelo e ficar sozinho, nu com minhas palavras, na cidade sem ninguém. Como num filme mudo, quis me esconder do mar.

Quis as coisas que estavam perdidas, cenas demarcadas, as morenas jovens e lindas, dos meus momentos iniciais mais felizes.  Quis saber de outros e ouvir: “Boa tarde, senhor, vai tomar um expresso?” Ué, já é meia noite? Cadê Billy Hayes?

Quis a cidade. A cidadania.

Ao receber o título de cidadão pessoense, disse no meu discurso que quando eu estivesse velho, alguém ia apontar e dizer – lá vai o velho Kubitschek. Esse tempo chegou. Tá na hora.  Estou na estrada. Sou peregrino. Vou bem mais.

Totalmente liberto, quis aquilo que se fez e se faz, com a beleza da juventude, que deu cabo de mim.

Fui bater no Café 17 e lá estava Jussara Moreno, aos pés de Nossa Senhora das Neves. A dona do pedaço. As duas.  Tomei um copo de café e comi um pedaço de bolo.

Da calçada do Mosteiro de São Bento, vi Woldy Allen dobrar a esquina. Fui atrás dele.

Tantas vezes só de se insinuar, de me chamar, a cidade estava excitante. Eu também.  Meus pés e mãos já não estavam mais atados.

Quis os anos 70 não os que derivam da companhia dos ébrios que mal me deixavam decifrar, nem devorar, toda vez que eu passava na frente da casa de Branca Dias.

Passei horas do sábado conversando com o General Osório e o Conselheiro Henriques. Papo bom.

Com os passar dos anos todos os encantos, as juras de amor, a cidade decorada em versos itinerários do velho Jomar Morais, e quem não morou por ali, não mora mais.

A cidade despiu-se, gritou meu nome, e da cozinha o cheiro de erva doce e sexo se misturavam a outras iguarias, como se a tarde se alongasse, quando o saxofonista tocou Jobim e desde o início, aquilo estava em mim.

Quis um aconchego.

Quis um relax, relax, relax, depois de uma temporada difícil de isolamento

Quis a flor amarela e lembrei das flores de plástico sendo jogadas nos meus pés, no Teatro Paulo Pontes quando fui ator, mas ator eu nunca deixei de ser.

Quis um pássaro para um debate, não um pássaro que se abate e não mata a fome de voo de ninguém.

Quis um soneto, quis a carne, quis o verbo e depois nem sei.

A cidade escureceu e eu me perdi na volta. Estava mais do que nunca derrubada a teoria de Zé Américo, de que na volta ninguém se perde.

Vasos nas janelas, vasos sem flores. Será que eu já morri?

Como uma luz estúpida e uma suave baça transformando minha busca, sem bússola, meu pai, minha guia. Eu ainda bem jovem, pele, osso e rastro. Fotografei tudo e mandei para a nuvem de Walter Galvão.

Sons de sim de não, sons de mim.  Lá longe o sax e o coração arrastado nos compassos. Sambei.

Desmanchando meu andar contra os paralelepípedos, “eu vivo nesse mundo, mas não sou daqui”.

Kapetadas

1 – É impressionante como coisas óbvias e básicas ditas são vistas como extraordinárias. As pessoas estão cada vez mais se contentando com migalhas éticas.

2 – Impressionante mesmo é como as coisas acontecem quando você passa a ficar quieto.

3 – Som na caixa: “A estrada desapareceu, restei o que sobreviveu” Adriana Calcanhotto

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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